Fugas.
Todos nós, uns mais que outros evidentemente, por vezes
sentimos um forte apelo para sair daqui apenas para ficarmos completamente
sozinhos.
Em 2018, estava eu a atravessar talvez os piores tempos da minha
vida em todos os aspetos, resolvi lá pelas quinhentas da manhã ir a pé sozinho
até Santiago de Compostela.
Sem qualquer preparação física, nem nada que se parecesse.
Fui comprar tudo o que me iria fazer falta na decathlon em
Leiria. Ele foi a mochila, uma gabardine, meias anti bolhas, cantil, barras
energéticas, duas espias (a importância que tiveram durante todo o percurso) e
botas.
A minha irresponsabilidade foi tanta que só estreei as botas
na caminhada propriamente dita. A sorte que eu tive.
Após 250 km a pé e a um ritmo que me recuso descrever, porque
sempre fui facilmente ultrapassado por velhotas do norte da europa que pareciam
doidas a correr atrás de não sei quê. Mas lá fui indo.
Caminho português, onde em 90% de todos os dias só se ouviam três espécies de sons: o barulho permanente da água dos riachos sempre
presentes naqueles trilhos, o chilrear dos pássaros e inevitavelmente o barulho
das minhas botas a caminhar.
A solidão absoluta. Mas uma forma de solidão estranha, apenas
porque nunca te sentes só!
Curioso, não é?
Tinha o passaporte do peregrino que levantei no posto de turismo em Fátima. Era um documento importante porque me permitia ficar nos albergues com direito a dormida e duche por apenas 5 €.
Ia tirando umas fotografias e publicando uma espécie de ‘diário
de bordo’ na minha página de fb. A coisa foi seguida por muita gente, porque
quando regressei à Vieira, uns 7 Kg mais magro, encontrava muita gente que não
conhecia e me dizia: “então, aquilo é que foi uma jornada difícil” ou “fui
acompanhando sempre a sua viagem” e outras coisas dentro deste género.
Fez-me bem o Caminho.
Fez-me bem, porque me obrigou a entrar em mim. O que, como
todos sabem, nunca é fácil. É necessário ter alguma coragem para enfrentar todo
lixo que vamos acumulando dentro de nós. Nunca é fácil vermo-nos ao espelho.
A minha mochila foi carregada e orientada por três primas
minhas, ou seja, 3 gajas!
Tens de levar isto, porque te pode fazer falta, e mais isto
porque nunca se sabe, e leva mais estes medicamentos e pomadas porque não sei
quê.
Quando desci as escadas para ir comprar um volume de cigarros
ao Café Liz, resolvi pesar a mochila na balança que o café tem há décadas. Mas continua
certinha: 17 Kg. F…-.e!
Eu nem disse nada, ainda me matavam (as mulheres quando se
armam em mães são lixadas!!!) mas quando cheguei podre de cansado da estação da Campanhã ao albergue
do Porto, o senhor que me ajudou a entrar e agarrou a mochila disse-me logo: “metade
disto tem de ir fora e ficar cá”.
É uma boa experiência, porque nos obriga a decidir o que é
importante face ao que é definitivamente acessório.
As minhas primas tinham escolhido uma toalha de banho topo de
gama com metro e meio por um metro que ocupava imenso espaço. Nessa altura o
senhor só me disse: “mas você vai para alguma praia fluvial ou quê? Isto fica.
Espere aí que já lhe ofereço uma toalha como deve ser”. E lá aprece ele com uma
toalha de bidé.
Eu só lhe disse que aquilo era impossível. Alguma vez eu me
conseguiria secar com aquele pano. Ele lá me garantiu que sim. E o facto é que
sempre o consegui fazer. Trazia depois o pano em cima da mochila a apanhar sol
para ficar sequinho para a próxima utilização.
Aconteceram três coisas absolutamente inexplicáveis durante
essas semanas do Caminho.
A primeira foi o esforço físico absoluto até à exaustão.
Quando não sabia se já tinha percorrido metade do percurso do dia e estava tão
cansado, mas tão cansado que pensava se não seria melhor voltar para trás e ficar
no alojamento onde tinha pernoitado na véspera. Se seria melhor e menos
fastidioso continuar em frente. Nunca voltei para trás.
O esgotamento físico liberta-nos o espírito. Nem sei nem
nunca saberei como descrever esses momentos tão duros e ao mesmo tempo tão
gratificantes.
A segunda coisa ou o segundo momento curioso foi quando numa manhã, lá pelas 9 horas começa a cair uma chuvada tão grande, mas tão grande e
acompanhada por granizo onde nunca parei de andar e com um sentimento de paz absoluta.
A mochila era impermeável, tinha vestido a gabardine, as botas eram
impermeáveis só fiquei mesmo com as calças de ganga molhadas dos joelhos para
baixo. Incrível e inesquecível sensação. Nunca saberei justificar esses
momentos de tão profundos e absolutamente libertadores.
A terceira é a decepção total. Quando chegas ao fim do Caminho
e … nada acontece.
Só aí entendes que a riqueza do Caminho de Santiago, aquele mágico percurso só vale mesmo pelo percurso. E não pela meta.
Agora que vou fazer outra "caminhada" difícil, recebi uma mensagem de um enorme amigo meu. De todos o mais bruto. Gosta de
cultivar esse género. Sempre gostou de esconder todas as suas fragilidades que
fazem dele um dos homens mais sensíveis e autênticos que alguma vez conheci.
Não foi por acaso que o convidei para ser Padrinho do meu
filho mais novo.
Hoje, em vésperas de me raspar para outro lado por uns tempos,
só me enviou, vinda do nada, esta mensagem:
“Amigo, o amanhã está a acabar, está na hora de te parires a
ti mesmo, como dizia Thoreau. Vê se começas a gostar de quem gosta de ti,
porque o resto pouco vale. Espero que desta vez valha a pena. Abraço”.
Porque chamam a este gajo Veneno?
Têm andado tão enganados!
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