Era puto e vi o meu pai triste.

 


Tinha apenas sete anos. Estávamos em 1975. Todos à mesa, num almoço igual a todos os almoços em minha casa. Todos sentados no seu lugar, sacos de guardanapo com o monograma de cada um bordado. Os mesmos copos, os mesmos talheres, que só variavam se fosse carne ou peixe. E, sempre à mesma hora. Cá em casa era assim todos os dias.

Naquele almoço, o ambiente estava muito carregado e eu só tinha sete anos.

Nem uma palavra, um som que fosse. Lá tentei umas graçolas. Nada. Toda a gente com a cara no prato a mastigar devagar numa tristeza estranha, mas bastante pesada.

O meu pai não comia, rigorosamente nada!

Até que a minha tia Helena Branca, lhe diz: “Óh Armando, come alguma coisa”.

O meu pai, lentamente afastou o prato, limpou a boca, esfregou os olhos discretamente e antes mesmo de se levantar e ir embora só disse: "fascista, eu?... não sou capaz de comer nada". E saiu.

Eu era novo demais para sequer tentar compreender o que se estava a passar. Aliás, nem fiz perguntas. Coisa que nunca foi meu hábito. Ficar calado. Mas fiquei.

Só alguns anos mais tarde me explicaram aquele almoço diferente porque muito amargurado.

Não sei se alguma vez contei esta história, só que hoje, não parei de pensar nela. Todo o dia.

O guarda portão da empresa de limas, militante do Partido Comunista, ouviu uma conversa no escritório que naquele dia calhava ao meu pai receber a PIDE em sua casa. Naturalmente, veio a minha casa e contou o que ouvira.

O café Liz era porto de abrigo de muitos vieirenses e, nessa tarde, como em tantas outras, o Dr. Franklim, médico, familiar e Amigo chegado da minha família entrou com a sua boa disposição habitual e perguntou ao meu pai se estava tudo bem. Até aqui nada de novo. Só que o meu pai respondeu que não. Não estava tudo bem, porque tinha sabido que seria preso pela PIDE nessa noite.

O Dr. Franklim, coitado, ficou lívido e saiu apressadamente. Escusado será dizer que o meu pai nem sequer foi abordado pela PIDE nessa noite nem nas seguintes.

Tinha sido o Dr. Franklim a evitar esses transtornos.

O guarda portão da empresa foi liminar e imediatamente despedido.

E assim permaneceu durante alguns meses. Só que, os comunistas da Vieira, onde o meu pai se incluía, fizeram questão de entregar mensalmente ao ex porteiro da empresa, uma soma igual ao vencimento que auferira até que conseguisse encontrar um novo emprego.

O meu pai, tal como o pai dele, eram antifascistas militantes. Toda a gente na Vieira o sabia. Arriscaram muito. Tanto um como outro.

A minha casa foi "paragem" de muitos democratas de então. A minha família ajudou imensas pessoas, quando com dificuldades se deparavam. Eles e as suas famílias, nomeadamente quando algum se encontrava preso. E, lá aparecia a mulher a pedir para se escreverem cartas a advogados e mexer algumas influências.

Bem sei que todas estas coisas parecem nada aos dias de hoje. Tenho perfeita consciência disso. Há sempre, como continuará a haver, memórias curtas. De gente ingrata. Ou, dito de uma forma mais subtil: de gente, simplesmente esquecida! Adiante.

Poucos anos antes do 25 de abril, o meu pai e alguns (poucos vieirenses) fizeram uma fábrica de limas, de seu nome Duarte Féteira, Lda.

O meu pai, ironia das ironias era o sócio minoritário. Com meia dúzia de percentagem no capital social da empresa. No entanto, era gerente com mais dois outros sócios.

O episódio que vou contar a seguir que me perseguiu hoje durante todo o dia, reporta-se ao facto de na entrevista ao  MST que vi na passada segunda feira, ele ter dito que, numa fuga da PIDE, a correr pela Av. Almirante Reis acima, todas as portas se terem fechado num ápice por todos os comerciantes, impedindo dessa forma, abrigar todos os fugitivos às mãos da polícia política. Essa mesma gente que cerrou portas aos outros, estaria, de certo na rua a gritar loas à liberdade no dia 25 de abril.

Estranho povo este. Repleto de cobardias e silêncios breves, quando silêncios convém cultivar.

Já quando o oportunismo é outro, lá vem tudo para a rua gritar as palavras de ordem que convém serem gritadas. 

Estranho povo este, não restam dúvidas!

Na Vieira, houve dezenas de famílias que adormeceram fascistas e acordaram comunistas no dia 25 de abril. Quem disser que o que acabo de escrever é mentira, pois que diga. Ainda me ensinaram alguns apelidos. Que, com a minha proverbial memória, conheço e retenho.

Logo após o vinte cinco de abril de 74, a situação económica do país sofreu alterações profundas como é sabido.

Regresso de quase 3 milhões de portugueses das ex-colónias, inflação nos vinte e tal porcento, diminuição de exportações, desvalorização do escudo, nacionalizações em barda com a consequente diminuição do investimento estrangeiro. Enfim, a tempestade perfeita.

A pobre Duarte Féteira, lá ia “desandando”, com imensas dificuldades. De entre todos os sócios e não eram mais de meia dúzia, quem foi o que pôs a assinatura em letras comerciais para pagar ordenados ?

Pois. 

Foi o Armando Teodósio.

Na minha família sempre tivemos fama de ricos. Pena nunca tivéssemos tido o proveito. Pena.

Uma noite decorreu uma reunião de trabalhadores da Duarte Féteira. Foi o Salão da Biblioteca de Instrução Popular o palco dessa “assembleia”. Inflamada reunião. Como todas essas reuniões, nesses tempos costumavam ser.

Só que, … todos esses recém filhos da esquerda, rapidamente concluíram que o meu pai nunca tinha passado afinal de um fascista e também por isso o principal culpado da situação que todos os trabalhadores dessa empresa viviam.

Daí a marcharem até minha casa, com e gritos ... “fascista!!! "O Armando Teodósio é um fascista!!!” foi um ápice.

A única pessoa que dormiu nessa noite nesta casa fui mesmo eu, que era um garoto e dormia como um santo, porque toda a minha família permaneceu acordada até aparecer a luz de um novo dia.

O meu pai nunca esqueceu esse episódio.

Aliás, ninguém nesta casa o esqueceu nunca. Nem eu, que só anos mais tarde o tentei compreender.

Ainda conto esta história aos meus filhos. A todos eles a contei. Talvez na esperança que saibam, que a maioria das pessoas podem ser fúteis, cruéis, mal agradecidas e profundamente contraditórias, assim mudem os interesses imediatos e as circunstâncias breves.

Lembrei-me disto ontem.

Lembrei-me disto hoje.

É que, já não tenho qualquer pachorra para ser deitado às feras, de cada vez que assumo uma opinião, que alguns, na hora H, temem em subscrever.

A vida é assim.

Sempre será assim afinal.

Quem é que me manda ser parvo, e pensar que as coisas são ou poderiam ser de outra maneira?


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