Leta, a Matriarca de todos nós.


Cá em casa, havia uma certa ordem. De papeis (porque cada um sabia perfeitamente qual era o seu), de poderes, de funções e até de afectos. Provavelmente todas as casas com muita gente são assim. Dentro de uma desorganização aparente sempre preside um conjunto de regras nunca assumidas, nunca ditas e muito menos escritas. Mas que existem e prevalecem acima de tudo.

A Leta, irmã mais velha do meu pai era bastante inteligente e absolutamente discreta. Extremamente orientada em tudo o que, efectivamente, tinha importância na vida de todos os dias, sempre comandou este barco dos Teodósios após a morte do meu avô. Contrariamente ao que toda a gente supõe foi sempre ela a tomar as decisões difíceis.
Todas as obras realizadas em minha casa eram sempre ‘chanceladas’ e desenhadas por ela. Quando construíram um prédio, todos os apartamentos a construir passaram pelo seu lápis. Todos os móveis que se mandaram fazer para a minha casa foram obras suas. As cozinhas foi ela que as desenhou. Uma morreu de velha, dando lugar a outra muito modernaça para aquele tempo.
A gestão do dinheiro ou da falta dele era tarefa do meu pai, já todos os outros ‘pelouros’ foram sempre assumidos pela minha tia Julieta. As compras para a casa, as refeições e, até determinada altura os coelhos e as galinhas onde tinha escrito num caderninho o nº de coelhos, datas de nascimento e respectivas paternidades.
Trabalhou na loja de fazendas do meu avô até ao fim. Quando fechou as suas portas e deu lugar ao actual café liz.
Vendia lãs e fazia casacos, pullovers e camisolas na sua máquina ‘topo de gama’. Fê-los para centenas de vieirenses. Normalmente naquela altura, eram as mulheres que da primeira vez levavam os maridos para tirar as medidas e depois, ao longo dos anos, (como os maridos não escolhiam as suas roupas melhores) elas lá voltavam e encomendavam a cor da lã, o feitio e o ‘produto’ e a minha tia Julieta aceitava todas as encomendas. No Natal a ‘produção’ crescia exponencialmente e tinha necessidade de recrutar mão de obra barata. Nesse caso recorria á minha tia HB e á minha mãe para ‘montarem’ as diversas peças pregarem botões, passar a ferro, etc.
A minha tia Julieta. Mulher sofrida. De apenas um amor. Para toda a vida, como deveriam ser todos os amores que se prezem.
Nunca se casou.
Quando nasci, a minha mãe, pura e simplesmente ‘entregou-me’ no colo das minhas tias e da minha avó Guilhermina. Talvez tivesse sido o acto mais generoso e digno que conheço até aos dias de hoje. Não me ofereceu. Entregou-me noutras mãos, porque, todas essas mãos ficariam definitivamente mais felizes comigo ao colo.
Até aos meus dois anos, mais coisa menos coisa, dormi sempre numa cama pequenina, como se fosse um berço, ao lado da cama das minhas tias. Aos domingos de manhã, punham-me na cama da minha avó, que me contava ‘o conto da calça preta’ e eu, coitado de mim, sempre acreditei que esse conto, pelo menos naquela manhã tivesse um final diferente. Escusado será dizer que nunca teve sequer final. Limitava-se a ser uma espécie de lengalenga esgotante.
As saudades que tenho de todos esses adormeceres e acordares. Talvez porque me sentia muito protegido. Sei lá.
Quando fui estudar para Leiria, foi sempre a Leta aquela que me acordava, fazia o pequeno almoço, preparava-me o lanche para levar para a escola e ficava na janela, ás escondidas, até eu entrar no autocarro.
Dois ou três anos mais tarde, eu só tinha três preocupações: não podia beber álcool em frente da minha tia HB, não podia ter notas fracas para a minha mãe e não podia fumar em frente da Leta. Digamos que cada uma tinha a sua especialidade. Tirando as notas que sempre foram mais ou menos boas, o resto sempre me deu imenso trabalho.
A minha mãe, sem abrir a boca, ofereceu-me todos os melhores exemplos de vida; a minha tia Helena Branca educou-me, já a Leta era diferente. Quando era pequeno, corria atrás de mim para me encher de beijos. E, já quando adulto era eu que lhe dava todos os mimos que me apetecia. Limitou-se sempre ao silêncio. Aquele silêncio feliz de quem não necessita falar, porque se sente em paz. Já com mais de trinta anos, quantas foram as vezes em que me sentei no seu colo. Sem pedir nada, nem um beijo. O colo da Leta bastava-me contra todos os males do mundo.
Hoje fazia 100 anos.
Importa dizer que morreu a dormir. Depois de ter subido as escadas desta velha casa com ela ao colo. Deitei-a. A Lígia tapou-a com toda a ternura do mundo … e, passado uma hora ou duas sem se mexer, sem revelar qualquer sinal de sofrimento adormeceu em paz, deixando em todos nós um vazio imenso.
Não digo até hoje, porque esse vazio será, como outros, até sempre.
Lá longe ou perto, quem sabe onde estará agora?
Um bj,
Rui

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