Em Lá!
No meu primeiro ano de economia, juntou-se no ISEG um
pequeno grupo de estudantes de Leiria para jantar na cantina.
Éramos 6 a contar comigo.
Não vou dizer os nomes, porque, neste momento, todos são
figuras públicas em diversos ramos. Nós, de economia e daquela faculdade somávamos
apenas 3. Um deles, extremamente forreta, para usar um eufemismo.
Tudo se passou naquela época do ano em que se nota que os
dias são muito maiores. A meio da primavera.
Fomos jantar cedo. As sopas da nossa cantina eram bastante
procuradas. Acabamos de jantar lá pelas sete e meia e ainda havia muita luz do
dia pela frente!
Como era cedo e estava um fim de dia tão bom e,
principalmente, porque não nos encontrávamos perto de exames nem nada que se
lhes assemelhasse, resolvemos assim, num ápice, ir ao Bairro Alto beber uns
copos.
Havia um elétrico que apanhávamos na Rua de São Bento que
nos deixava no Largo do Camões.
Toda a gente de passe em punho para ir esperar a carruagem.
Por acaso, sempre foi o meu meio de transporte favorito em Lisboa.
Eis senão quando surge o forreta de Leiria, que não tinha
comprado passe e andava a bilhetes porque devia poupar vinte cinco tostões por
mês ou coisa que lhe valesse, e recusa-se ir de transporte público. E, resolve
dizer, para mal dos nossos pecados que íamos todos a pé, porque não custava
nada e tal….
Ficou toda a gente passada com o gajo, hoje um destacado
empresário de Leiria.
Estava assim tudo a começar a ficar aos gritos com ele e eu,
que me apetecia ir ao BA, mandei um berro, calei toda a gente e fiz a seguinte
proposta: “vamos a pé, mas a cada taberna por onde passarmos bebemos um traçado
de rola. O último que pousar o copo no balcão paga a rodada”. Aqueles infelizes
aceitaram logo a proposta, porque tornava a viagem muito mais divertida e até,
imagine-se, competitiva.
Eu arrependi-me logo da proposta que tinha feito e só digo
assim: “peço desculpa, mas não posso submeter-vos ao enxovalho de ganhar
injustamente”. Fica sem efeito a minha proposta. Pensem noutra.
Os gajos, não estavam a entender nada e resolvem perguntar
assim com um ar bastante curioso: “Óh RA, o que é que estás pra aí a dizer?” ao
que eu respondo com toda a calma do mundo: “eu estou altamente treinado para
este tipo de competições porque passo férias na praia da Vieira e vocês andam
em acampamentos de escuteiros e passam férias na praia do cão” (pedrogão –
leia-se).
Ficou toda a gente assim um bocado entre o riso e a raiva
ferida.
E, pronto, lá se sujeitaram a uma humilhação gratuita.
Importa dizer que um traçado é um copo de 3 com vinho tinto
e gasosa.
A caminhada começou.
O número de tabernas era enorme e rapidamente chegamos à conclusão
que tínhamos como se dizia em matemática, fazer uma ‘restrição’, se quiséssemos
chegar ao Bairro Alto em condições mínimas. Então, a partir dessa altura só
contavam tabernas cujo balcão fosse de mármore branco e tivesse, pelo menos uma
mesa para quatro pessoas com tampo de mármore e 4 bancos. Ficaram bastante
reduzidas as tabernas a entrar até chegar à meta.
Nunca paguei nenhuma rodada. Era uma das enormes vantagens
de se passar as férias grandes na praia da Vieira.
Chegados ao BA, alguém se lembra, deve ter sido o Cócas, a
ir a uma casa de fado. Como éramos todos uns tesos, procuramos uma taberna de
fado vadio. Não se pagava a entrada e ouviam-se fados.
Estava um senhor sentado num banco com uma viola, unhas
compridas, cabelo com brilhantina e puxado para trás, assim com um ar de
marialva que gosta de touradas e tal e tocava a pedido. Cada um podia chegar ao
pé dele, dizer o fado que queria cantar e ele tocava e a pessoa gritava ou
arranhava a música e a letra.
Eu, que apesar de nunca ter pago nenhuma rodada tinha uns 18
traçados no estômago, tal como os outros e estava tão mal tratadinho como todos
eles. Estava a achar piada àquilo e disse aos gajos: “vou cantar um fado”.
Lá me levanto, sabe Deus como, chego ao homem da viola e
perguntei-lhe assim: “posso cantar um fado?” e ele, simpático só me respondeu: ”que
fado é que o senhor quer cantar?”
E, eu, de peito feito, pergunto: “O senhor sabe tocar ‘o
cacilheiro’?”
Bem, a resposta foi bastante assustadora, quando ele me
pergunta: “em que tom?”
Perdido por cem, perdido por mil.
E só me lembrei de dizer: “em Lá!”
Ele começa a tocar, e …. Fomos todos postos na rua, com a
menina da taberna, que por acaso tinha uns dentes da frente pretos de tão
podres a gritar: “eu não disse avozinha, que eles só vinham pra gozar connosco!”
Que eu não veja mais os meus filhos se aqui está escrita
alguma mentira!
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