Escape livre.

 


A primeira vez que fui ao Algarve tinha 6 anos. Até tenho vergonha de dizer, isto passou-se há 48 anos. Todo o imenso tempo da ditadura.

Arrendamos um quarto em Tavira íamos à praia todos os dias. Cada dia, cada praia diferente. Foram férias inesquecíveis. Até me lembro de escrever um postal aos meus pais numa esplanada qualquer.

Num sábado, estava marcado um baile popular bem perto do apartamento onde estávamos hospedados. Com apenas seis anos, tive de pedir autorização para ir ao baile. O que me valeu passar vergonhas, porque as minhas tias só riam e diziam: “começas cedo”, mas deixaram-me ir até às 10 h.

Escusado será dizer que fui o primeiro a entrar. Não paguei nada porque era puto e fui colar-me (textualmente) ao palco. A minha maior fascinação era a bateria. Uma coisa quase inexplicável.

Pelas 10 e a custo, lá voltei. Perguntaram-me no gozo se tinha dançado com muitas miúdas. A nada respondi. Nem sequer me sentia gozado por elas. Tinha o pensamento fixo na bateria e naquela parafernália de tambores e pratos.

Desde essa noite até hoje, tenho sabido manter uma profunda paixão por aquele instrumento musical.

Quando, aos 15 anos, fiz parte de um conjunto, como baterista, posso dizer que nunca tive uma bateria minha.

O pessoal tinha violas, baixos, etc. Já eu sempre andei com baterias emprestadas. Penso até que esgotei todas as que existiam na Vieira.

Naquele tempo, um gajo como eu tinha de saber falar francês correta e escorreitamente e …. tocar piano.

Era o meu caso. Mais ou menos. Falava e escrevia muito melhor o francês do que tocava ou tentava tocar piano.

Esse conjunto, que foi o único a que pertenci, nunca teve nome. Mas fizemos algumas atuações e ganhamos uns dinheiritos.

Eu, o Paulo Feijão, o Paulo Farinha, o Quim Branco, O David da praia, o Nuno Veiga, o Paulo Nuno. Caraças, era uma equipa de altíssimo luxo.

O Zé da Quinta, coitado, sempre nos apoiou. Tinha pertencido a muitos conjuntos e achava-nos piada. Emprestava o material que precisássemos e, em algumas ocasiões, levava-nos na sua ‘Ramona’ aos locais dos ‘Concertos’.

Fizemos bailes a 10 contos cada um. E, divertíamo-nos como poucos.

Só que continuávamos sem nome.

A partir de certa altura comecei a tocar de luvas, porque chegava ao fim dos ‘concertos’ cheio de foles nos dedos, tal era a ganância de fazer barulho.

A certa altura ouvimos falar de uma maravilha da tecnologia da época, que era um amplificador para viola, com coluna incorporada. Esse equipamento encontrava-se à venda numa loja de instrumentos na Marinha que existia num pequeno centro comercial. Naquele tempo, só se ia à Marinha se houvesse muitos assuntos para tratar, porque 15 km eram 15 km. Pedimos boleia ao meu pai que foi tratar das suas coisas e entramos, tipo ‘os sete magníficos’ centro comercial adentro. Tínhamos tudo combinado entre todos, só pelo prazer e pelo show.

A loja ficou logo cheia, com tanta gente, perguntamos pela maravilha tecnológica que custava 25 contos de reis. E, eis senão quando ‘aquilo’ aparece mesmo à nossa frente. Era um aparelho pequeno e robusto, com uma marca desconhecida. Então, cada um, saca da sua viola e, sem termos um tostão no bolso, só dissemos: “nós só compramos depois de verificar isto”.

Os gajos da loja nem estavam a perceber nada da nossa conversa. Estava uma Pearl na montra da loja, toda montadinha com pratos e tudo. Deixei de ouvir todo o processo de negociação e dediquei-me apenas a ‘contemplar’ aquela preciosidade. Nós tocávamos uma música dos J. Geils Band que se chamava ‘Centerfold’.

Enquanto os meus gajos estavam nos ‘acordes’ e nessas merdices, eu viro-me para toda a gente e só disse assim:

“está claro que vamos comprar este amplificador e coluna a pronto, por isso estes senhores têm de nos permitir tocar uma música. Arranjem lá um amplificador de baixo um sintetizador e mais dois de viola e claro esta maravilha que está na montra. Por mim só preciso de duas baquetas.

Os tipos da loja não acharam graça nenhuma aquela proposta. Só que, naquela altura, 25 contos sempre eram 25 contos.

Começamos a tocar e o Feijão a cantar. Passados poucos segundos estava toda a gente do lado de fora a ouvir aquilo.

Voltamos para a Vieira, fizemos um rateio pelos pais, pedimos 10 contos emprestados a um senhor rico da vieira, com a promessa que liquidaríamos a divida no ‘final da época’ e voltamos à Marinha buscar ‘aquilo’.

Eu nunca tive bateria por isso sempre tive de pedir emprestado. Ao Pacheco, ao Zé Rosa, ao Zé da Quinta, e sei lá mais a quem.

O Feijão tinha viola baixo (oferta da sua avó), mas não tinha nem amplificador nem coluna, o Paulo Nuno governava-se com um órgão de pedaleiras de uma das suas muitas namoradas. É nessa altura que o Carlos Pacheco se lembra que o Fernando da Praia tinha uma brutal coluna Marantz com respetivo amplificador da mesma marca dos antigos, dos bons a válvulas. Só que estava estragado.

O senhor Fernando até nos emprestou tudo com a maior das boas vontades. Mas, faltava um ‘engenheiro’ para encontrar o problema.

Eis que surge o António Falamim. Uma espécie de fazedor de milagres na arte da engenhoquice elétronica. Só tinha um problema. Tinha tanto que fazer, que não tinha tempo para nos aturar. E eu disse assim: “o Falamim é compadre do meu pai, são muito amigos, por isso eu vou lá todos os dias. Não se preocupem!” E fui. Muito aborreci eu o Falamim diariamente.

Ia com ele para a oficina, onde havia uma lupa enorme com luz e deixava-o a falar sozinho com o amplificador.

Não estava fácil!

Identificou e corrigiu 99% dos problemas. Só que o 1% restante eram duas válvulas, que já não existiam no mercado.

Restava apenas uma ‘solução’ para se poder utilizar aquele magnífico amplificador Marantz.

Teria de funcionar com a tampa de trás aberta, para eu ver a cor das válvulas. Até ao amarelo estava tudo bem, mas se começasse a passar para o vermelho e como nós só tocávamos rocalhadas, eu que estava num pequeno palco mais alto e era o que estava mais atrás, começava a bater freneticamente naqueles tambores todos, para o pessoal entender que era para acabar a música.

Depois deixávamos as válvulas arrefecer e siga, mais uma. Nos mesmíssimos moldes de vigilância colorida.

É pá, aquilo era um gozo sem tamanho.

No final do Verão fomos pagar a dívida contraída. O amplificador aguentou uns 10 bailes, o Paulo Farinha foi estudar para Coimbra e a aventura acabou.

Ficou há uns meses a promessa de nos reunirmos novamente, até porque agora cada um tem instrumentos do melhorzinho que por ai anda. E eu tenho uma bateria comprada.

Um dia num baile, tínhamos de ter um nome para o cartaz. É na altura que o Pacheco, nosso santo protetor apenas diz: estes gajos são os “escape livre”.

Todos odiamos o nome, mas foi o que apareceu no programa.

Ganhamos 10 contos e o resto é conversa.

Até hoje.


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