Gorjetas.


 

No verão de 1986, tinha eu dezoito anos acabadinhos de fazer, o meu pai disse-me (não me pediu), que tinha de fazer as férias do Senhor Manel. Cumprir turnos, vender gasolina, gasóleo e óleos diversos bem como ver a pressão dos pneus, sempre que o cliente o solicitava e também lavar os vidros dos carros se me fosse feito tal pedido.

Tal como hoje acontece com o António, o meu futuro salário já tinha encontrado diversas e por vezes opostas formas de ser derretido. Mesmo antes de o ter recebido!

Jantava na barraca, quando a minha mãe trazia o jantar. De cada vez que punha uma garfada á boca aparecia um automóvel vindo do nada.

As bombas encerravam às 23 h, sendo que a última hora era bastante calma e eu aproveitava para varrer tudo de uma ponta á outra.

Houve até uma noite que um cliente do café Liz perguntou quem era aquele rapaz tão esmerado. Quando lhe disseram quem eu era, saiu do café só para me cumprimentar e contar velhas histórias do meu avô. Tinha acabado de regressar da África do Sul e era convictamente racista e fervoroso adepto do Benfica. Era o Chincha, morreu há pouco tempo coitado.

Como sempre fui extremamente distraído entregava o dinheiro todo ao meu pai. Confiava nele totalmente e, caso aparecesse dinheiro (pouco) a mais, consideraria esse excesso como as gorjetas que tinha recebido ao longo daquele mês.

Algumas manhãs houve em que logo depois de abrir as bombas entrava no café e pedia ao saudoso Zé uma mistura terrível: uma italiana dupla com um limão espremido lá dentro. Coisa horrível, bem pior que um Bloody Mary, mas com os mesmos efeitos. Naquela altura valia tudo, até ir trabalhar sem ter dormido uma hora. Enfim, coisas que não se contam aos filhos! Por decoro apenas!

Chegado ao fim do mês, esperei, esperei e o meu pai nada.

Depois de um almoço de domingo, lá ganhei coragem fui ao seu escritório reclamar o meu ordenado (naquela altura eram quase 90 contos), sem horas extraordinárias.

Não sei bem porquê, mas o meu pai estava com um ar divertido e só me disse que estava à espera que eu fosse reclamar o que me pertencia.

Tinha tudo num envelope daqueles azuis de papel mais fino (porque eram mais baratos).

Eu agarrei-o e estava pesado, com muitas moedas lá dentro.

No espaço do destinatário vinha escrito em letra de forma:

“Com os agradecimentos da firma Armando F Teodósio Pedrosa, Lda, somos a devolver todas as gorjetas auferidas pelo Exmº Senhor Rui António Pedrosa, que perfazem o valor de 251 escudos e quinhentos centavos.

Vieira de Leiria, tal e tal"

E eu a esperar quase 90 contos de reis, que na minha cabeça já se encontravam gastos com tanta compra que iria fazer.

Fiquei sem palavras. Abri o envelope, olhei para as gorjetas e só lhe disse isto: Mas óh pai, eu trabalhei tanto como o Senhor Manel, durante um mês inteiro e tu nem o ordenado me pagas?

O meu pai sorriu e só me deu confiança para proferir esta frase: “quando um pai pede ajuda a um filho, ele ajuda e ponto final!”.

Nem fiquei fulo, nem contente, nem coisa nenhuma. O que me aconteceu é que nunca me esqueci deste episódio.

É por isso que tenho tanto que fazer esta semana, os meus filhos sabem disso, e até hoje, zero de telefonemas.

Isto sim é triste, quando os nossos se recusam a aprender alguma coisa. Sempre é melhor estar a jogar no computador a ver filmes da Netflix até às quinhentas ou então sair com os amigos.

Acontece porém, que eu nestas coisas, agarro em tudo sozinho e depressa as acabo também sozinho!

De raiva.

E de estupidez, por não lhes ter conseguido passar o significado daquele episódio com o meu pai em 1986.

Quanto a ti puto, tens-me feito imensa falta ultimamente.

Vê lá se regressas de Portimão depressa pá. Nem que seja apenas por um, dois ou três dias. 

Este Natal sem ti, foi mais difícil do que é costume. Acredita!


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