Quando eu fazia de Google.
Desempenhei algumas tarefas diferentes profissionalmente.
Umas mesmo totalmente diferentes de outras. Algumas, porque outras nem por
isso, permitiram-me ser imensamente feliz.
De entre todas elas, e retirando alguns estágios
profissionais que tive o prazer de realizar, a minha primeira ‘espécie’ de
trabalho a sério, foi de entre todas, a mais fascinante, como de resto, a mais
inesperada.
Fazia de google.
Durante um ano foi o que fiz. De google. Ainda não havia
net. Os PC’s estavam no seu início. Dominava o MS DOS. Nada mais que isso. Uma
merda.
Tinha 23 anos, estava a frequentar o mestrado de
‘Desenvolvimento e Cooperação Internacional’ no ISEG. Era um tema bastante
interessante que se prendia essencialmente com as problemáticas das economias
africanas, ajudas externas e carências de desenvolvimento económico vário.
Até me estava a redimir das fracas classificações que tive
na licenciatura (quando as licenciaturas eram de cinco anos e não estas tretas
de agora).
Na minha turma, 40% dos estudantes eram oriundos das
ex-colónias portuguesas. Essencialmente Angola e Cabo Verde. Para ser rigoroso:
um cabo-verdiano e 17 angolanos. Dos 17 angolanos havia uma senhora da UNITA e 16
senhores e senhoras do MPLA. Sendo que um deles era ‘controleiro’ dos outros
15. Era da polícia política de Luanda.
Para mim, tudo aquilo era bastante divertido. Principalmente
porque a Lurdes, da UNITA, não facilitava a vida ao pessoal do MPLA. E, fomos ficando
amigos. Tal como eu, era uma ‘desbocada’.
A corrupção e a putice, não se verificam apenas nos negócios
de estado. O mundo académico vende-se por vinte cinco tostões. Nesta história, os
Profs., neste caso do ISEG, adoravam ser convidados para umas conferências com tudo pago em
hotéis de cinco estrelas de países pobres, dos mais pobres do mundo, decidiam
‘oferecer’ 40% das turmas deste mestrado aos ‘africanos’, que, coitadinhos, por
serem oriundos de África, seriam ou deveriam ser todos pobrezinhos e, por isso,
tinham descontos monumentais, nas propinas, nos livros técnicos e até no preço
das fotocópias.
A realidade, porém revelava outra coisa bem diferente. Todos
esses meus colegas africanos pertenciam às elites do seu país. Tirando o Cabo
Verdiano, coitado, e a Lurdes da Unita.
Como sempre fui de reparar em detalhes, não me passaram
despercebidos os anéis e brincos de diamantes, nos dedos e nas orelhas daquela
gente toda. Passavam férias na Suiça, faziam compras em Londres, Paris e Nova
Iorque, tinham quintas na Argentina e brutais duplexes em Lisboa.
Mas pronto, eram pobrezinhos e usufruíam de ajudas do Estado
português.
Conheci a mulher do CEO da TAG, e de diversos Ministros do
governo de Angola. Quase todas de uma mediocridade intelectual atroz. Mas
pronto, tinham descontos em tudo.
No final do ano lectivo entendemos fazer um jantar de turma.
Num restaurante angolano. Organizaram tudo. Belo jantar, com comida angolana.
Do princípio até ao fim. Estava toda a gente divertidíssima, com música
africana e a pedido deles, as garrafas de whisky apareciam umas atrás das
outras. Os ‘brancos’ nem queriam acreditar em toda aquela ostentação.
No fim, aparece a conta. E, lá vão os bolseiros carregados
de notas de dez contos e nós os brancos ricos a pedirmos dinheiro uns aos
outros. Fomos humilhados. Foi sempre essa a intenção deles. Dos pobrezinhos. E
nós, com dois ou três whiskys caímos que nem uns burros!
O mestrado era de noite e eu trabalhava de dia com a pessoa
mais inteligente que alguma vez conheci. O professor Armando Antunes de Castro.
Como um dia se lhe referiu Mário Soares: “o nosso homem da
Geopolítica e da Geoestratégia” num almoço no ‘João do Grão’ no Rossio. Amigo
pessoal de Jorge Sampaio. Fugiu para Grenoble onde cursou economia (na vertente
política e social) e por lá se doutorou e regressou a Lisboa depois do 25 de
Abril.
Como todas as pessoas exageradamente inteligentes, trazia
com ele uma pancada enorme. Engraçou comigo, que ficava fascinado a ouvir as
suas aulas. Que não tinham guião, não tinham programa, não tinham sumário, não
tinham bibliografia, não tinham nada. Limitavam-se a ser lições magistrais de
economia internacional, com especial enfase na Nova Europa que se estava a
reconstruir após o Tratado de Maastricht.
Adorava aquele velho (de 52 anos com um metro e sessenta,
careca e louco). Visto agora a esta distância, 52 anos e velho, dá-me uma
imensa vontade de rir.
Insistiu para me candidatar ao Mestrado. Logo eu que era um
aluno de 12.
Convenceu-me e comecei a ser um aluno de 17, porque era
verdadeiramente aquela via da Economia que sempre me interessou. As
matemáticas não.
Convidou-me para ser seu assistente nos projectos que
desenvolvia. Ofereceu-me 80 contos por mês.
Não havia internet. E comecei a fazer de google para o prof.
Armando Castro.
Tinha escolhido uns 170 assuntos diferentes. E eu, ‘só’
tinha de ler diversas publicações mundiais, e destacar todas as que tinham que
ver com os temas pré-estabelecidos. Lia, destacava e, no fim do dia recortava e
colava em folhas brancas A4, para depois ser tudo arquivado nas pastas
respectivas.
Almoçávamos juntos num restaurante perto da casa dele em
Campo de Ourique. Grande tasca aquela. Quantas vezes por lá encontrei o Paulo
Feijão, que trabalhava num estúdio de som a cem metros da casa do Prof. Armando
de Castro.
Por vezes até aos sábados trabalhávamos.
Adorávamos aquilo. Assim como adorávamos discutir os dois.
Fomos ficando amigos. Bastante amigos.
O tempo e a qualidade e sinceridade com que o sabíamos
partilhar faz destas coisas.
Transforma pessoas em Amigos para a vida.
O Armando de Castro tinha e trazia diversas mágoas consigo.
Vivia atormentado, por assistir à elevação da mediocridade,
dos medíocres e dos cínicos. Tudo isto se passou no tempo do Cavaquismo.
O material de trabalho era o Financial Times, O Diário de
Notícias, o Público, o Expresso, o Le Monde, o El País, o New York Times, o The
Guardian, o Courrier, o Le Monde diplomatique, o The Washington Post, o Herald-Tribune
enfim, … eram ‘apenas’ todas as publicações mais prestigiadas do mundo.
Nunca, até hoje estive tão ‘up the date’, como naquela
altura.
Ler, destacar, recortar e colar.
Foi esse o meu primeiro trabalho.
Larguei tudo, porque uma vez o Senhor Doutor, Engenheiro,
Arquitecto, e demais cursos superiores que nunca frequentou nem terminou,
Henrique Neto, me disse esta frase monumental: “deixe lá essa porcaria toda, e
venha desenvolver um novo departamento comigo no Grupo Iberomoldes. O
departamento de marketing. Só responde a mim. A mais ninguém”.
E, lá abandonei Campo de Ourique, o Mestrado e o Prof.
Armando de Castro.
Pouco tempo depois, limitava-me a transportar amostras dos
primeiros ensaios dos moldes, tirava fotocópias e enviava faxes. Para além
disso ia assistindo a gritarias e enxovalhos enormes vindos desse grande senhor
dos moldes.
Uma vez atirou-me a porta do seu gabinete na cara.
Tudo isto para dizer, que por vezes, uma decisão
imponderada, implica transformar toda a nossa vida para sempre.
Ainda hoje penso que ter regressado à Vieira foi uma opção irreflectida.
De entre todas as péssimas opções que fiz pela minha vida fora, essa foi a pior
de todas certamente. Não terminei o meu mestrado. E, fui ficando na
mediocridade dos dias que passam.
Quanto ao Armando de Castro foi nomeado Director da OCDE.
Chegou onde sempre quis e merecia estar.
Pouco tempo depois, morreu disparatadamente.
Mas ao menos, tocou, ao de leve, no céu com que sempre sonhou.
Tenho saudades desse tempo e do Armando de Castro, naturalmente.
Muitas saudades.
Lembro-me perfeitamente de te encontrar à hora de almoço na saudosa “Venezuela”, agora transformada em mais um espaço pós moderno saloio onde podes parar a trotinete, ou fazeres uma paragem no tuc tuc, para comeres um croissant!!
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