A Inveja e o Ódio (conclusão)

 


Era uma vez, há muito muito tempo, um lugar mágico que existia atrás de uma velha casa.

Essa casa estava bem no centro da aldeia. Toda a gente a conhecia, estava à vista de todos.

Naquele tempo, os donos da casa tinham-na vestido com outra ‘roupa’, rasgado as portas do R/C, colocado montras enormes e conseguiram fazer um café moderno e bonito para aquela época. Todo equipado com o que de melhor havia.

Esses donos da casa não tinham sido, de forma nenhuma, os primeiros. Já eram a terceira geração que nela habitava por aquela altura. Era mesmo uma casa velha, de 1905.

Nela viviam 3 crianças, quase todas da mesma idade. Todos em escadinha. Se um tinha 5 anos, os outros tinham 6 e sete. Eram todos uma espécie de irmãos. Brincavam todos juntos. Era assim sempre.

Muitas vezes comiam na mesma mesa. Umas vezes ao almoço, outras ao jantar. Quando era Verão, iam juntos para a praia com a tia do menino do meio.

Sempre felizes.

Sempre como irmãos.

Ao redor dessa casa viviam muitas crianças, quase todas das mesmas idades. Vizinhos e companheiros de brincadeiras e partidas sem fim.

Entre aqueles três meninos existia uma ligação mais forte do que com qualquer uma das outras crianças. Devia ser pela ‘magia da casa’ não sei. Ou então pela magia do seu quintal.

Uma espécie de palco onde quase tudo aconteceu. Nesses tempos, não existiam play stations, computadores, jogos eletrónicos, net, sei lá mais o quê …    

A falta de todas essas coisas fez com que os meninos daquela casa e alguns vizinhos inventassem muitas brincadeiras.

Fizeram dois espetáculos de circo, com cóbois, palhaços, 1 mágico, uma cantora que estava a passar o verão nessa aldeia e cantava em estrangeiro, domadores de perigosos felinos (naquele caso um gato pardo) que comiam umas raspas de fiambre no pescoço do dono que se encontrava em tronco nu, indefeso e deitado no chão, completamente ao dispor de qualquer capricho da fera. Havia ainda um número de transmissão de pensamento – uma coisa quase esotérica.

Vendiam-se bilhetes à porta de dois e quinhentos cada um. Só plateia. Não havia nem tribuna nem balcão. A receita recolhida era transformada em gasosas Rical e bolos secos, distribuídos pelo elenco.

Em 1976, fundaram um partido político e tinham uma sede naquele quintal. O lema do partido era ‘unidos venceremos’, assim estava pintado a verde na parede exterior.

Fizeram um comício memorável com diversos oradores e muita assistência. Nessa altura não era necessário contratar o Toy para encher o quintal!

No fim, fez-se um peditório pela assistência e o lucro apurado foi gasto integralmente na pastelaria da aldeia.

À medida que iam crescendo foram começando a sair de casa e a brincar na rua. Naquele tempo, andavam por onde queriam desde que chegassem a casa para jantar.

Já tinham carrinhos de rolamentos, andavam por todo o lado de bicicleta, jogavam aos cóbois ao berlinde e à bola no largo do centro da aldeia.

Apanhavam grilos. Aos vinte e aos trinta, porque usavam uma técnica altamente avançada para aquela época. Permitia aumentar exponencialmente a velocidade dessas caçadas. Utilizavam uma garrafa de litro de Martini cheia de água e deitavam uma pequena quantidade nos buraquinhos dos grilos, que saiam imediatamente. Era muito mais eficaz do que a tradicional palhinha. Depois não sabiam o que fazer com tanto grilo e uma tarde resolveram arranjar uma caixa de papelão tapada com um plástico com buracos para os grilos respirarem e deixaram umas folhas de alface. No outro dia estava toda a gente morta. Um deles só disse isto: ”suicidaram-se todos”!

Havia um polícia que detestava que os putos jogassem à bola no largo e sempre que podia tirava-lhes a bola e cortava-a com uma faca. Aquilo começou a tornar-se divertido e nas sextas feiras, depois da escola e antes de começar o jogo, os miúdos telefonavam para a polícia a denunciarem-se a eles próprios, apenas pelo prazer de fugir à polícia com a bola.

Ainda havia carros de bois e no Carnaval compravam-se bombas numa loja do largo e uma vez resolveram aproveitar uma bosta enorme que se encontrava mesmo em frente da pastelaria da aldeia. Alguém teve a ideia luminosa de colocar a bomba dentro da bosta. Só o pavio ficou de fora. Foi um acontecimento bélico de elevadíssimo calibre. A montra da pastelaria ficou num estado monumental. E foi nessa altura que inventaram as chamadas ‘bombas de merda’.

Foi uma infância muito saudável para os três meninos, apesar de alguns infelizes episódios como as fugas à polícia e aquela maldita bomba.

O tempo foi passando. O quintal deixou de ter piada. Aqueles meninos, tinham ido cada um para seu lado.

O mais velho foi estudar para a cidade e só aparecia aos fins de semana e mesmo assim não eram todos.

O do meio ficou na aldeia a estudar e o mais novo (personagem central desta história) também. Todos arranjaram novos amigos. Novas companhias e claro, novas maneiras de ocupar os tempos livres.

A vida é sempre assim.

Contudo, há amizades que se julgam eternas, porque foram fundidas e moldadas durante a infância de todos eles.

A vida não quis que assim fosse.

E, a partir de certa altura, o menino mais novo vai-se transformando num ser diferente. Amargo. Azedo. E profundamente invejoso dos outros dois.

Não quis estudar e invejava os outros porque continuaram os seus estudos. Saiu de casa muito novo para se gabar que era independente. Dizia mal dos pais, da vida, do trabalho, do parco ordenado. Estava permanentemente a vitimizar-se como se fosse um desgraçado a quem a vida tinha roubado tudo. Como qualquer despeitado e complexado, sentia-se absolutamente superior aos outros, que considerava serem uns felizardos e uns burros.

Os anos foram passando e depois de um acidente grave, os pais compram-lhe uma casa nova. Tinham ficado impressionados com as condições em que esse menino vivia com a família.

Nas palavras dele, aquela casa era uma porcaria. Passado poucos anos vendeu-a e comprou outra melhor. Equiparada á casa do irmão mais velho. Um sonho realizado.

E, eis que surge a oportunidade de ficar com o negócio do pai.

Ficou com outro nível de vida. Muito trabalhador e bastante organizado vai tendo um poder de compra que nunca deve ter pensado alcançar. Sentia-se dono e senhor de tudo e de todos.

Os anos vão passando e os clientes vão desaparecendo a um ritmo lento. Uns, porque tinham deixado de se sentir bem lá dentro. Outros, porque se sentiam destratados pelo anfitrião.  

Ofereceu pancada a muitas pessoas: todas idosas, com mais de oitenta anos! O ambiente foi-se degradando cada vez mais.

Ofendia gratuitamente quase toda a gente a partir de certas horas. Talvez porque sentisse que nunca ninguém deixaria de ir ao melhor café daquela aldeia. Que era o dele.

Os dois meninos mais velhos tiraram os seus cursos. Trabalhavam eram bem vistos profissional e socialmente. E, aquilo incomodava-o bastante. Sempre o incomodou.

Mas ele era melhor. Muito mais inteligente e culto que qualquer deles. Era a superioridade ‘ariana’ no seu máximo esplendor.

Invejoso.

Mal formado.

Mau caracter.

O menino do meio já adulto e depois de ter ouvido tantas ofensas e humilhações diversas, por duas vezes, apertou-lhe o pescoço. E as coisas só não foram a mais porque houve sempre alguém que o impediu. Uma das vezes até foi a mãe da sua filha mais nova.

Nessa noite, nem os mortos respeitou e resolve dizer que a família toda do dono daquela velha casa mais não foi que uns inúteis e uns mandriões toda a vida. Depois fugia para traz do balcão que sempre funcionou para ele como uma espécie de ‘trincheira’ que o protegia de tudo e de todos e lhe permitia dizer tudo o que lhe apetecia.

É claro que esta história não acaba aqui. Mas falta pouco...


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