Profundo Respeito.

 


Nunca ninguém está preparado para organizar, presenciar e encaminhar a própria mãe á terra. Ninguém está pronto para ir ao funeral da sua mãe. São circunstâncias para as quais ninguém nos ensina como.

No meu caso, foram três enterros. De três mães. Das minhas mães. De todas as que tive, uma morreu a dormir. Ninguém esperava. Como a deitei na cama, depois de a ter trazido ao colo e subido a escada da minha velha casa. Da sua velha casa. Deitei-a. Tapei-a. Adormeceu imediatamente. Nunca acordou. Adormeceu para sempre tal como a tinha deitado.

Não me venham dizer que alguém pode estar pronto para uma morte assim. Uma morte santa, como todos dizemos. Só que, para quem fica, de um segundo para o outro, cai todo o nosso mundo em cima de nós. A dor, a angústia absoluta e a desorientação de quem tem uma vaga noção de tudo o que acaba de perder, é tão grande, tão forte e tão avassaladoramente triste, que nunca, por nunca, conseguimos ou tentamos sequer conseguir ultrapassar. O tempo vai passando. Só o tempo, que tudo cura, tudo trata e quase tudo melhora, vai transformando a nossa dor numa espécie de saudade mansa. Tranquila forma de saudade essa, que nunca nos deixa pela vida fora.

Foi assim. É assim ainda que vivo ou vou vivendo com as minhas memórias da minha tia Julieta e do meu pai.

De um segundo para o outro, partiram. No caso do meu pai, … deixou-se adormecer nos meus braços. 

Ninguém nunca recupera destes momentos!

No caso da minha mãe e da minha tia Helena Branca tudo se processou de uma forma brutalmente diferente, porque muito demorada e muito sofrida. Desnecessariamente sofrida. Tão sofrida que muitas foram as vezes que desejei que tudo acabasse mais depressa. Desejei e nunca me envergonhei de o sentir, que o tempo fosse breve e misericordioso com elas. Mas não foi. Nesses meses, pensamos que estamos preparados para tudo. Porque estamos a ser fortes. Imensamente fortes. Mais fortes que a vida e que a morte. Sentimos que quando a morte chegar, será um alívio, porque o sofrimento delas tinha chegado ao fim. E, quando o fim chega, … ninguém se encontra preparado para fim nenhum. E, tudo desaba novamente. Até talvez de uma forma muito mais intensa, porque tudo o que fomos aguentando ou pensando que estávamos a saber aguentar, entorna-se para dentro de nós com uma intensidade absolutamente devastadora.

Lembrei-me de todos estes momentos, porque hoje me cruzei com um aluno da minha mãe. Hoje um homem. Quarentão. Nem sequer me reconhece na rua. O que é normal. Nunca me esqueci desse ‘miúdo’, porque tem problemas mentais e a minha mãe sempre o tratou com todo o carinho do mundo. A ‘carteira’ dele foi sempre a mesa de trabalho da minha mãe. Ou seja, esteve durante quatro anos ao seu lado. Tratou-o sempre como um menino sensível e desprotegido. Deu-lhe imensas explicações em minha casa. Como fez a tantos, tantos alunos seus.

Conseguiu que concluísse com sucesso a instrução primária.

Agora é pedreiro.

No dia do funeral da minha mãe, fiz questão que a caminhada até ao cemitério, passasse e parasse em frente da minha casa. Foi a forma que encontrei de a homenagear, porque aquela casa, a minha casa, foi dela também. “é tua, é tua” gritava eu para dentro de mim próprio, completamente destroçado quando o carro funerário parou por breves minutos frente aquele que tinha sido o seu quarto, durante todos os anos em que viveu nesta casa.

Penso que já por aqui expressei diversas vezes a relação que sempre tive, tenho e desejo manter para sempre com a casa onde agora vivo. E, que vou tratando como se de uma pessoa se tratasse.

Na rua dos vidreiros enquanto lentamente acompanhava a minha mãe até ao cemitério, passamos por uma obra. Num dos andaimes, vi um homem levantar-se, baixar a cabeça e tirar o boné. Terá voltado ao trabalho após a passagem de toda aquela multidão de pessoas.

Quando passo por aquele pedreiro, que até nem se lembra de mim, como aconteceu hoje, sei bem que nem sequer imagina, o conforto que me passou com aquele gesto de profundo e silencioso respeito manifestado perante a memória da sua professora.

Não faz a mínima ideia de quem sou, assim como desconhece em absoluto o profundo respeito que lhe tenho.

A vida é feita destas pequenas coisas, que nos ajudam a transformar as nossas saudades maiores em memórias mansas, confortáveis e claro, apaziguadoras. Porque há sempre alguém que se vai lembrando dos nossos com imensa ternura.   


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