Há anos que estou para dizer isto.
Esta é daquelas histórias que ninguém conta. Primeiro porque
não interessa, segundo porque é de família e terceiro porque poucos irão
acreditar nela.
Sinceramente, estou-me completamente nas tintas para tudo
isso.
Talvez tenha esperado mais de vinte anos para a escrever.
Talvez.
Acontece que hoje quando saí de manhã pude assistir ao início
do desmantelamento das bombas de gasolina que pertenceram à minha família por
mais de 70 anos.
Em boa verdade, foram o primeiro posto de abastecimento de
combustíveis, no tempo do meu avô António.
Inicialmente eram da marca Shell. E assim permaneceram
durante algum tempo, até que o Senhor Albano Féteira, moveu as influências
necessárias e suficientes para impedir o meu avô de comercializar com aquela
marca de combustíveis, tendo inaugurado umas bombas “Shell” em frente à oficina
de mecânica ‘Tomé Féteira’, na ladeira da carvalheira, onde hoje se encontra LIDL.
Escusado será dizer que o meu avô, não achou piada nenhuma e
disse em minha casa esta frase deveras ‘original’: “enquanto não arranjar outra
marca, não descanso”.
E parece que se cansou pouco, porque passado algum tempo era
concessionário da “Companhia Portuguesa de Petróleos Atlantic”, que tinha
surgido em Portugal em 1929.
Naquele tempo o negócio do retalho de gasolinas era muito
reduzido, ainda mais na Vieira, que tinha poucos automóveis, motorizadas e
cucciolos (espécie de bicicletas a pedais com um motor e depósito de 1 litro).
O que revela bem o desinteresse comercial no negócio, porque com pouquíssimos
clientes e ridículas vendas. O senhor Albano retirou a marca Shell ao meu avô
por raivazinha política e nada mais que isso. E também pelos mesmos motivos
(politicamente ao contrário) deve ter o meu avô arranjado outra nova marca que
tinha acabado de se implantar no país. Coisas do género: “quem é que ele pensa que
é? Isto não fica assim!”.
Em 1955, a velha “Atantic” foi rebatizada de BP e conheceu um
crescimento no retalho de combustíveis em Portugal exponencial. O meu pai tinha
acabado de herdar este e outros negócios (uns melhores que outros,
evidentemente). Mas a venda de combustíveis tinha disparado, atendendo ao cada
vez maior número de automóveis, camionetas, tratores, motas e motores a dois
tempos. De tal maneira o negócio cresceu que houve necessidade de alargar o
espaço de venda, no início dos anos 70. É quando a BP arrenda uma área à Igreja
que até ao dia de hoje se mantém.
Os concessionários da BP tinham de pagar todos os
fornecimentos a 10 dias (tivessem vendido, que não tivessem vendido), o que
implicava que, quando o preço dos combustíveis aumentava, o concessionário
tinha de pagar ao fornecedor mais caro do que recebia dos clientes. Recordo
filas intermináveis nas bombas do meu pai nas vésperas dos aumentos de preços
anunciados. Eu era puto e adorava aquilo. Vinham tratores com reboques cheios
de barris de 200 litros e eu ia lá para cima encher aquilo tudo e punha uma
pedra pequena na agulheta para escusar de estar sempre a carregar. Nessa altura
existiam outras bombas de gasolina (que ainda existem) no centro da Vieira. A
marca era a Mobil. A diferença é que a forma de pagamento era diferente. Esses
pagavam à consignação, ou seja, só pagavam após a venda. Escusado será dizer
que quando havia aumentos no preço do combustível a eles não lhes afetava
rigorosamente nada. Já o meu pai quanto mais vendesse na véspera, mais
prejudicado ficava. Nunca aquele homem negou um litro de gasolina a ninguém,
fosse às horas que fosse. As bombas tinham horários de abertura e de fecho, só
que nessas noites, o meu pai só fechava quando acabava o último cliente.
Perdendo dinheiro com isso.
Por vezes o último cliente chegava às 2 ou 3 da manhã, que
era a hora em que a fila acabava.
Nessas noites, em minha casa havia um episódio recorrente,
que era uns telefonemas anónimos a dizer a mesma frase: “daqui fala um amigo. É
melhor fechar as bombas, está-se a prejudicar.” Cá em casa todos sabíamos quem
era o ‘anónimo’, que se estava a borrifar para os nossos ganhos e perdas,
porque o que lhe fazia verdadeiramente impressão era a monumental quantidade de
litros que estávamos a vender.
Uma noite numa ida rápida ao escritório, foi o meu pai que
atendeu esse carinhoso telefonema. Ouviu e só disse assim: “Óh António, já
fechaste as tuas bombas, estás preocupado com as minhas porquê?” Era o António
Cunha, que desligou imediatamente o telefone, coitado.
A venda de combustíveis foi um negócio muito rentável no
tempo dos alvarás condicionados pelo governo. Para terem uma ideia quem vinha
de Leiria para a praia da Vieira ou do Pedrogão a primeira bomba de gasolina
que encontrava era a do meu pai.
Como todos sabem, as coisas mudaram muito. E, lá está, a
política de pagar passados 10 dias continuou.
As vendas foram caindo a pique, as margens por litro também
e, a velha bomba da BP começou a dar prejuízo. Tínhamos empregados, segurança
social, todos os direitos de lei e prémios de fim de ano que o meu pai nunca
abdicou de conceder.
Nessa altura já se encontrava muito debilitado e ainda
pensava que a bomba dava lucro.
Eu e o meu querido Raúl Teodósio Coelho da Silva dissemos um
ao outro que nunca fecharíamos o posto com o meu pai vivo.
E, assim foi!
Há 22 anos encerramos aquelas que foram as primeiras bombas
de gasolina da Vieira.
Muita confusão fez isto a tanta gente.
“O teu pai deve estar a dar voltas na cova!”
“Coitado do Armando Teodósio, fartou-se de trabalhar e o
filho acabou com o negócio do velho!”
Para quem me conhece bem sabe que em circunstâncias normais
eu não admitiria este tipo de provocações. No entanto, talvez por estar
profundamente fragilizado com a morte do meu pai, nunca a nada respondi.
Muita gente houve na Vieira que quis agarrar o negócio que eu
tinha acabado de fechar. Mais de 13 ou 14 pessoas o tentaram. Nenhuma o fez, conhecidas as 'condições'. Toda a gente nesta vida sabe fazer contas de somar e subtrair. E, lá
ficou o velho posto até hoje.
Tudo isto interessa pouco. Ou mesmo nada. Só que o ano passado
descobri que o meu filho António (sagrado nome aquele), que vivia no Restelo e a escassos
metros de um primo meu de quem sempre gostei muito. E, combinei um encontro
entre eles. Fui comprar as melhores morcelas e torresmos e disse ao António: “levas
isto que ele vai adorar”. E adorou.
No entanto, uma das perguntas que fez ao meu filho foi, “mas
afinal o teu pai fechou as bombas porquê? Nunca entendi isso!”
Pois, disse eu mais tarde ao meu filho, “só as fechei
passados mais de 5 anos a aguentar o prejuízo, porque o teu avô ainda era vivo.”
Porque será que a vida dos outros interessa tanto? …… aos
outros, claro está.
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