Abutres da Nazaré.


 

Alguma vez olharam para um Mar qualquer,

Mas que não é o vosso?

Parto do princípio que tenham um Mar que vos pertence.

Talvez seja ao contrário, porque nestas coisas de pertenças, diz-nos a sabedoria e a idade que

tudo se encontra do avesso.

Somos nós, que pertencemos a algumas coisas, lugares, pessoas e até a circunstâncias

presentes e passadas.

Nunca passaremos de uns vulgares simplórios com a mania de que valemos alguma coisa.

Essa é que é a mais absoluta verdade.

Não possuímos rigorosamente nada.

Podem alguns viver escravizados e embrutecidos com o propósito de recolher e acumular

alguma coisa.

Tantos homens fui conhecendo na Vieira que chegaram a velhos, com oito décadas e até mais

… e ricos!

Todos eles. Como sempre foi o seu desejo principal e mais premente.

Tudo sacrificaram a esse propósito ou desígnio. Tanta porcaria foram fazendo ou deixando feita

para chegar a um metro de profundidade.

Há muitos anos que tenho, nem sei bem porquê, o hábito de acompanhar alguns amigos, cujo

respeito me obriga a fazer parte da sua última caminhada, … volto para casa em silêncio e

sozinho, como tenho preferido estar, perguntando-me: “valeu a pena? Já lá estás! Afinal não

levaste nada contigo”.

Com os meus mortos, nunca por nunca, me detive com esse tipo de interrogações. Talvez

porque sempre ouvi o meu pai dizer que “onde um homem mais baixo desce, é quando se

incompatibiliza em partilhas”.

Deve ter sido por isso ou também por isso, que nunca as tenha feito e fez por ignorar sempre

as da minha mãe com os cunhados. Todas essas coisas lhe meteram sempre nojo. Essa é

mesmo a palavra certa: ‘nojo’, no que aos pouquíssimos bens da minha mãe diziam respeito.

Ainda por cima com a realidade da minha mãe estar a ser deliberadamente prejudicada pelos

seus irmãos por um metro, metro e meio de terra.

Nunca se quis envolver nessas trapaças o meu pai.

Fez mal.

Toda a vida, a minha mãe foi prejudicada.

Toda a vida.

Fez mal o meu pai.

Sobrou para mim. Passados que estavam 28 anos, deixei a minha mãe contigo, o seu muito

querido sobrinho e com a tia Deolinda, e, armei-me em ‘meu pai’. Disse assim: “resolve lá isso.

Vou beber um café, já te venho buscar”.

Deixei a minha mãe entregue aos lobos, sem saber muito bem o que fazia. Fui beber um café e

fumar um cigarro a olhar para o mar da Nazaré (que por mais que me esforce nunca será o

meu). Estas coisas de mares e de horizontes são tramadas.

O que é nosso ou nós delas, é sempre para a vida toda.

Pensei, nessa altura, que apesar de profundamente injusto o tema dessa conversa, fecharia um

acordo rápido e fácil.

A minha mãe nunca quis fazer uma escritura de doação de 25 m2. A parte do meu tio João no

casebre de família. Era desejo do meu tio deixar esses 25 m2 às duas irmãs que sempre

trataram dele e das quais sempre dependeu. A minha mãe a enviar dinheiro mensalmente e a

minha tia a cuidar do irmão.

Toda a família sabia disso. E a minha mãe nunca achou necessário ir ao notário de Alcobaça

porque todos os seus irmãos saberiam respeitar a vontade expressa do meu tio João.

O meu tio João foi a enterrar com um fato do meu pai. O funeral, foi pago pela minha mãe,

que, lá está, nunca apresentou contas. A compra da campa, enfim, … todas essas ‘minudências’

que como toda a gente sabe custam dinheiro.

Já assim tinha sido com o meu avô Henrique e com a minha avó Maria.

Muitos sobrinhos a minha mãe criou como se de filhos se tratassem. Mesmo depois de eu ter

nascido.

Mas como aquela escritura de doação do meu tio para a minha mãe e para a minha tia, nunca

foi assinada, os abutres apareceram. Seriam uns 30 a disputar entre si 25 m2, onde a minha

mãe e aminha tia tinham também o seu quinhão. Estavam em causa tornas de 17 m2. “Brutal”!

Nessa tarde. Nesse Sábado, entreguei a minha mãe às feras e fui beber um café, fumar um

cigarro e olhar para o mar que nunca foi meu.

Não tinha a mínima consciência do que tinha feito, quando deixei a minha mãe com mais de

setenta anos sozinha com duas cobras.

Regresso, bato à porta e deparo-me com um espetáculo absolutamente inesquecível. Tu aos

gritos e a minha mãe a chorar copiosamente como uma criança. Perante o ar sibilino e

cúmplice da Deolinda.

Lembro-me que mandei dois berros, ofereci o mesmo preço ao metro quadrado que o tio

Leopoldino tinha vendido o seu terreno (na altura por 60.000.000$00).

Logo aceitaram.

Passado uns meses fez-se a escritura.

Ficaste com o que moralmente não te pertencia, como nunca pertenceu a ninguém de toda

essa corja.

Curiosamente nenhum dos muitos sobrinhos da minha mãe recusou o seu quinhãozinho. Há

quem venda a honra e a dignidade por muito pouco. Mesmo os mais ‘honrados’.

Apesar de ter comprado cada metro quadrado ao mesmo preço que se praticava na avenida da

Liberdade em Lisboa, lá me vi livre de todos vocês.

Quando a minha mãe foi a enterrar, não estranhei a tua ausência. Estranhei sim a falta de um

telegrama, um telefonema que fosse. Até um mail.

Tenho andado há anos para te dizer tudo isto.

Agora, que tudo na Nazaré se encontra resolvido e possuo uma casinha com dois quartos com

vista para o mar, tinha de te dizer que a única coisa que lamento e sempre lamentarei é que a

minha mãe nunca lá tenha podido entrar, porque os irmãos e mais tarde os sobrinhos

atrasaram todo esse processo 28 anos seguidos.

Que os 500 euros que te couberam te tenham feito bom proveito. Quem se vende por muito

ou por pouco nada merece da vida.

Que Deus te perdoe. Logo a ti que sempre foste um dos sobrinhos mais queridos que a minha

mãe teve.

Uma tarde ousaste levantar-lhe a voz e com isso puseste a minha mãe a chorar. Ainda por cima

sem a razão do teu lado.

Vales pouco.

Até te digo mais, para mim, não vales rigorosamente nada.

Desejo apenas que quando a tua hora chegar te lembres, nem que seja por um segundo, do

quanto fizeste sofrer a mulher que sempre te quis como se de um filho se tratasse.

Há quem não mereça o Amor absoluto de ninguém.

Tu és um desses Olávio.


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