José Manso.
A primeira vez que entrei na nossa Biblioteca, foi pela mão
do meu pai. Tinha 3 anos. Quando era presidente da BIP e tinham feito uma enorme
quermesse de Natal no primeiro andar. A segunda vez, foi também com o meu pai,
na inauguração da primeira exposição de pintura, em 1972, nas Comemorações dos
40 anos da Biblioteca. O pintor era D. Luiz Pereira Coutinho e eu tive de
entregar ao Governador Civil de Leiria uma pequena salva de prata onde
depositaram uma tesoura para que dessa forma "Sua Exª." pudesse cortar a fita!
As figuras que o meu pai me fez fazer. Só me lembro de um
balcão enorme e para mim inacessível onde tinham colocado a tal salva com a
tesoura. Estava bastante nervoso. É a única coisa de que me lembro.
Tudo isto para dizer que a minha paixão pela Biblioteca de
Instrução Popular vem de tempos antigos.
O Senhor Manso presidiu aos destinos da BIP muitos anos
depois e por vários mandatos.
Como é próprio dos portugueses, a nossa relação com a memória
é bastante lamentável, para não dizer outra coisa.
Hoje ao saber da morte do Senhor Manso, fiquei, posso
garantir, bastante triste.
Por ele nutria elevado respeito e, com ele tinha uma “tarefa”
por cumprir.
Na noite inaugural da sua última exposição de pirogravura,
ofereceu-me este trabalho onde está a minha casa.
Fiquei-lhe grato e prometi-lhe mostrar como ficaria esta obra
após a mandar emoldurar.
Não me deu tempo.
Foi embora.
Cada vez vai acontecendo com mais recorrência, os nossos
Amigos partirem depressa demais.
Nada fazia prever que a Vieira, terra que há muitos anos
adotou visse partir um dos seus melhores nesta altura.
Há quase cinquenta anos que decidiu ficar por cá.
A nossa Biblioteca muito lhe ficará a dever para sempre.
Penso que a maioria de nós não sabe a qualidade do trabalho
que por lá deixou feito, bem como a enorme entrega que dedicou àquela que para
sempre será a nossa Casa. O nosso refúgio e o local onde fomos realizando quase
todos os nossos sonhos.
Poucos sabem esta estória, mas quem ajudou a “fazer as pazes”
entre a BIP e o senhor Lúcio Féteira foi ele. E o velho Raúl, homem de mão de
todos os presidentes de direção que por lá foram passando, há quase 40 anos.
Preparam-lhe uma surpresa no pátio da Pensão Clara, onde
tinha terminado de jantar, com uma apresentação magnífica do nosso Rancho.
O senhor Féteira adorou e ficou comovidíssimo com aquela
atenção da Biblioteca.
Ficaram a conversar até altas horas da noite após a
apresentação do Rancho. Parece que naquela noite o senhor Lúcio não se cansava
de enumerar e desfiar todas as suas melhores recordações vividas na Vieira da sua infância
e juventude.
No final da longa conversa ambos os diretores são
confrontados com esta totalmente inesperada questão: “Oh meninos, qual é a
minha quota? Devo estar a dever muito dinheiro, porque não me lembro de pagar
nos últimos anos. Vocês correram comigo como sócio?”.
Tanto o senhor Manso, como o Raúl acharam graça à
pergunta e corrigiram a dúvida: “O senhor Lúcio não deve nada, porque como é
sócio fundador, está isento do pagamento de qualquer importância.”
Obtiveram como resposta esta frase enigmática: “temos de
corrigir isso!”
No mês seguinte e até à sua morte, todos os meses a conta bancária da
Biblioteca era creditada com 100 contos. 500 €, nos dias de hoje. E isto
aconteceu há mais de 30 anos. Para a dimensão da BIP, foi sempre uma ajuda brutal.
Arrisco-me a dizer que ninguém conhece ou se lembra deste “acaso”.
O senhor Manso e toda a sua família dedicaram-se ao rancho e á divulgação do nosso folclore e tradições de pequena terra da beira mar durante muitos anos.
Acarinhou, enquanto presidente da BIP a primeira conferência
jamais realizada sobre a temática dos Avieiros, por proposta da sócia Ana
Brito.
Continuou a colaborar intensamente com a Biblioteca sempre,
mesmo depois de ter saído dos seus Corpos Sociais.
O Rancho e a BIP muito devem a este Homem.
Recordo um episódio numa festa no Largo da República, durante
uma atuação do Rancho que já se encontrava com os seus crónicos problemas de
falta de dançarinos, eu ter feito um apelo publico aos: “vieirenses de gema”
para aderirem ao Rancho e permitirem a sua natural continuidade.
Confesso que, caso o tempo voltasse para trás, com quase toda
a certeza, voltaria a proferir a mesma frase.
Só que o senhor Manso não gostou. Não gostou mesmo nada. E,
num discurso nesse mesmo dia, utilizou a minha expressão, para transmitir que
os “vieirenses de gema” estão totalmente afastados das suas raízes, da sua
cultura e, naturalmente da sua divulgação.
Aquilo era para mim, que tinha vinte e poucos anos e, não
achei piada nenhuma.
Conversamos ou fomos, no decurso de muitos anos conversando
sobre esse tema. Como em todas as conversas autênticas, ambas as partes sabem
ouvir e, com isso, alterar e melhorar as suas posições.
Ficamos amigos.
Para sempre.
Estou-lhe a dever a moldura para a obra que tão gentilmente
me ofereceu, por retratar a minha casa nos anos 30 do século passado.
Fica a saudade, fica o enorme respeito e fica essa falta, que
penso corrigir em tempo breve.
Até um dia Senhor Manso.
Descanse na mais absoluta paz, com a qual sempre soube viver em
todos os anos que connosco privou.
Não restam dúvidas, se dúvidas houvesse: o senhor sempre foi “Um
Vieirense de Gema”. Um cidadão exemplar.
Obrigado.
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