100 ANOS.
Se fosse viva, a minha mãe, hoje, faria 100 anos.
O tempo vai passando sobre as nossas 'separações maiores' e transforma a saudade, assim, numa espécie de saudade mansa. Uma saudade doce, calma e acolhedora de alguém que ainda nos faz falta e que um dia esperamos voltar a ver. Gosto de pensar que ainda vou podendo contar com a sua ajuda nos meus momentos, digamos, desagradáveis - e nos últimos anos, têm sido demais. Demais mesmo. Só agora a minha vida retomou o ‘caminho certo’.
Mas, se lembro hoje a minha mãe, não é só pela falta que me tem feito, nem tão só, pelo dia de hoje.
Lembro-a, sempre disponível para os outros.
Extremamente solidária com os seus alunos, que irremediavelmente, terá marcado, pela exigência, pela competência, rigor e ambição, que, penso hoje, terá passado a todos.
Foi uma mulher simples, oriunda de uma família simples, que trabalhou toda uma vida, tirou o seu curso com mais de 40 anos. Casou-se com o homem da sua vida, já bastante tarde. Entrou numa casa governada apenas por mulheres (a sogra e as cunhadas) e conseguiu o feito de se integrar com relativa facilidade, porque esta coisa de uma 'sociedade de mulheres' é de uma complicação avassaladora.
Foi a melhor companheira que o meu pai poderia ter tido em qualquer circunstância.
Reformou-se depois de 46 anos de trabalho apenas para ajudar o meu pai com a doença de que sofria. E acabou por morrer logo a seguir à sua partida.
Nunca tive qualquer dúvida que apesar do muito amor que sempre me teve, era o meu pai o amor da sua vida. É muito raro encontrar amores assim.
Mulher frontal. Não trazia desaforos para casa. Hoje, se fosse viva teria pedido explicações cara a cara a todos os que, querendo, me poderiam ter ajudado e se limitaram a virar a cara para o lado.
Trabalhava eu em Alcobaça no Banco, quando um cliente na casa dos 60 anos, me perguntou, pelo meu apelido, se não seria da família de uma senhora da Nazaré que terá sido sua professora. "Já deve ter morrido". Quando lhe disse que era a minha mãe e vivia com saúde e boa disposição, o senhor rejubilou e no Sábado seguinte lá estava em casa dela comovido às lágrimas por reencontrar a sua velha professora, que ia buscar os alunos um a um a casa na Pedreneira e parecia uma galinha com os pintainhos todos atrás dela. Um dia ele fingiu estar doente e num segundo ficou logo a transbordar saúde por todos os poros, porque a professora entrou pelo quarto dentro ralhou e 'acabou o teatrinho da doença'. A minha mãe era assim. Foi sempre assim.
Exigente.
Exigente até demais.
É dessa mulher generosa, solidária, extremamente trabalhadora e frontal que sinto a tal saudade mansa. Saudade de quem sabe que se fosse viva, afinal tudo poderia ter sido diferente daquilo que foi e que é. Porque nunca soube conviver nem com a hipocrisia, nem com a ingratidão e muito menos com a mentira. A falta que me tem feito a minha mãe.
Deixou-me apenas uma coisa: um enorme orgulho em ser seu filho e pouco mais que isso. O que, nos tempos que agora vivo, não é pouco.
Não é mesmo nada pouco.
Tudo o que conseguiu ter deu-lhe imenso trabalho, durante muitos anos. Ajudando sempre a sua família enquanto estudava. Tirou o Curso Comercial, na escola que eu e o António frequentamos.
Sempre trabalhou para custear os seus estudos e ajudar a irmã, o seu irmão João, alguns sobrinhos e a sua mãe.
Até ao fim.
Foi uma das pessoas mais generosas que conheci em toda a minha vida. Aquele tipo de generosidade que se tem apenas pelo prazer de fazer ou contribuir para fazer os outros felizes. Muitas vezes silenciosa ou totalmente anónima e discreta.
A minha Mãe foi assim a vida toda.
Nunca ninguém está preparado para organizar, presenciar e encaminhar a própria mãe á terra. Ninguém está pronto para ir ao funeral da sua mãe. São circunstâncias para as quais ninguém nos ensina como.
No meu caso, foram três enterros. De três mães. Das minhas mães. De todas as que tive, uma morreu a dormir. Ninguém esperava. Como a deitei na cama, depois de a ter trazido ao colo e subido a escada da minha velha casa. Da sua velha casa. Deitei-a. Tapei-a. Adormeceu imediatamente. Nunca acordou. Adormeceu para sempre tal como a tinha deitado.
Não me venham dizer que alguém pode estar pronto para uma morte assim. Uma morte santa, como todos dizemos. Só que, para quem fica, de um segundo para o outro, cai todo o nosso mundo em cima de nós. A dor, a angústia absoluta e a desorientação de quem tem uma vaga noção de tudo o que acaba de perder, é tão grande, tão forte e tão avassaladoramente triste, que nunca, por nunca, conseguimos ou tentamos sequer conseguir ultrapassar. O tempo vai passando. Só o tempo, que tudo cura, tudo trata e quase tudo melhora, vai transformando a nossa dor numa espécie de saudade mansa. Tranquila forma de saudade essa, que nunca nos deixa pela vida fora.
Foi assim. É assim ainda que vivo ou vou vivendo com as minhas memórias da minha tia Julieta e do meu pai.
De um segundo para o outro, partiram. No caso do meu pai, … deixou-se adormecer nos meus braços.
Ninguém nunca recupera destes momentos!
No caso da minha mãe e da minha tia Helena Branca tudo se processou de uma forma brutalmente diferente, porque muito demorada e muito sofrida. Desnecessariamente sofrida. Tão sofrida que muitas foram as vezes que desejei que tudo acabasse mais depressa. Desejei e nunca me envergonhei de o sentir, que o tempo fosse breve e misericordioso com elas. Mas não foi. Nesses meses, pensamos que estamos preparados para tudo. Porque estamos a ser fortes. Imensamente fortes. Mais fortes que a vida e que a morte. Sentimos que quando a morte chegar, será um alívio, porque o sofrimento delas tinha chegado ao fim. E, quando o fim chega, … ninguém se encontra preparado para fim nenhum. E, tudo desaba novamente. Até talvez de uma forma muito mais intensa, porque tudo o que fomos aguentando ou pensando que estávamos a saber aguentar, entorna-se para dentro de nós com uma intensidade absolutamente devastadora.
Lembrei-me de todos estes momentos, porque hoje me cruzei com um aluno da minha mãe. Hoje um homem. Quarentão. Nem sequer me reconhece na rua. O que é normal. Nunca me esqueci desse ‘miúdo’, porque tem problemas mentais e a minha mãe sempre o tratou com todo o carinho do mundo. A ‘carteira’ dele foi sempre a mesa de trabalho da minha mãe. Ou seja, esteve durante quatro anos ao seu lado. Tratou-o sempre como um menino sensível e desprotegido. Deu-lhe imensas explicações em minha casa. Como fez a tantos, tantos alunos seus.
Conseguiu que concluísse com sucesso a instrução primária.
Agora é pedreiro.
No dia do funeral da minha mãe, fiz questão que a caminhada até ao cemitério, passasse e parasse em frente da minha casa. Foi a forma que encontrei de a homenagear, porque aquela casa, a minha casa, foi dela também. “é tua, é tua” gritava eu para dentro de mim próprio, completamente destroçado quando o carro funerário parou por breves minutos frente aquele que tinha sido o seu quarto, durante todos os anos em que viveu nesta casa.
Penso que já por aqui expressei diversas vezes a relação que sempre tive, tenho e desejo manter para sempre com a casa onde agora vivo. E, que vou tratando como se de uma pessoa se tratasse.
Na rua dos vidreiros enquanto lentamente acompanhava a minha mãe até ao cemitério, passamos por uma obra. Num dos andaimes, vi um homem levantar-se, baixar a cabeça e tirar o boné. Terá voltado ao trabalho após a passagem de toda aquela multidão de pessoas.
Quando passo por aquele pedreiro, que até nem se lembra de mim, como aconteceu hoje, sei bem que nem sequer imagina, o conforto que me passou com aquele gesto de profundo e silencioso respeito manifestado perante a memória da sua professora.
Não faz a mínima ideia de quem sou, assim como desconhece em absoluto o profundo respeito que lhe tenho.
A vida é feita destas pequenas coisas, que nos ajudam a transformar as nossas saudades maiores em memórias confortáveis e claro, apaziguadoras. Porque há sempre alguém que se vai lembrando dos nossos com imensa ternura.
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