Lisboa.

 


A vida não é tão simples como os tempos dos verbos. Sendo os principais o passado, o presente e o futuro.

A vida não é nem se resume apenas a ‘isto’.

Existem bocados de passado que nos continuam a ‘atormentar’ durante muitos presentes. Alguns bocados até farão sempre parte do nosso futuro.

A vida está muito para além da gramática e dos tempos verbais.

É mais complicada por isso? De forma nenhuma.

É mesmo assim. Não há nada a fazer para evitar que certos bocados de passado (bons ou maus) nos queiram perseguir pela vida inteira. Depende de nós apenas. É como certas pessoas. Depende sempre de nós resolver dar ou não importância grande, pouca ou nenhuma a determinadas personagens que fazem ou já fizeram parte do nosso caminho.

Depende.

Tive um professor que nos dizia: “a única resposta que está sempre certa é: ‘depende’”.

Bela forma de relativizar tudo o que tem e deve ser relativizado.

Já estou com 54 e finalmente, entendi estas elementares evidências.

A vida é como um tinto velho e bom. Que soube envelhecer. Tem de estar na temperatura certa e deve sempre ser decantado. Juntam-se dois, três, quatro, cinco amigos. Uns queijos que fazem admiravelmente bem ao colesterol, pão alentejano e já está. A perfeição.

Sempre procurei a perfeição. Em tudo o que gostava de fazer como é evidente, porque de resto, trabalhei sempre para os chamados ‘mínimos olímpicos’. Por exemplo, se detestava uma cadeira na faculdade (e houve tantas, meu Deus!), fazia tudo para o 10. Nada mais que isso. Houve até, por diversas vezes que só estudava metade da matéria (que valia 10 valores no exame) e tinha 10. Estas coisas que não se contam aos filhos claro, mas davam uma adrenalina do caraças.

Muita cadeira fiz eu assim. Abusei sempre da sorte. E, sempre tive sorte. Estes hábitos trazem consequências que ainda me afetam. Gostar de fazer tudo no último instante. Adoro isso. Quem me conhece bem sabe que sempre fui assim, depois de ter passado pelo ISEG. Porque antes, até era um tipo organizado e muito bom aluno. Nunca fui de estudar muito, mas era organizado.

A minha vida em Lisboa tinha, naquela altura, uma mistura de alguma solidão, quando chumbei no segundo ano e me separei dos meus amigos do primeiro, alguns vinham de Leiria da Escola Domingos Sequeira. Foram-se todos embora e eu fiquei com 2 cadeiras do 1º ano e 3 do segundo. E fiquei sozinho! E, … desliguei. Era amigo do pessoal da Associação de Estudantes da JCP, escrevia no jornal da Associação, baldava-me às aulas que era uma maravilha. Aos fins-de-semana, vinha à Vieira para passar as noites de sábado na praia da Vieira, no Nélson, no Pianu’s e finalmente na Riomar. Quando me apetecia cantava uma ou duas músicas com a banda do Luís Russo no Pianu’s. Nesse tempo as noites acabavam relativamente cedo. Três, quatro no máximo. Nada como agora.

Depois voltava ao domingo para Lisboa e para mais uma semana sem pôr os pés na faculdade deambulando sozinho por Lisboa. Tinha comprado uma pastita de cabedal nos vendedores ambulantes do Cais das Colunas que trazia sempre agarrada à mão direita e às costas. Lá andava eu, pelo Castelo onde quando o tempo estava bom escrevia cartas para o meu pai. Na baixa nas lojas de discos antigos a procurar coisas de jazz, do Vinícius sei lá. O meu meio de transporte favorito era o elétrico. Às terças comprava o Jornal Sete que trazia todos os espetáculos para toda a semana e artigos de críticos de música sobretudo. Entrava no 42 (penso eu) que ia da Praça do Chile até a Av. D. Carlos onde tinha de sair para ir para a escola. Se tivesse acabado de ler o Jornal ainda ia ao ISEG jogar King. Se ainda tivesse ‘bocados de jornal’ para ler, voltava para trás na mesma ‘carreira’ e ia para casa. Nesse ano, tenho impressão que fui duas ou três vezes às aulas. Depois fazia todos os exames em julho e/ou Setembro. Sem ter postos os pés nas aulas. Pedia os apontamentos àquelas meninas que escrevem tudo o que os profs dizem. Estudava e safava-me sempre.

Lia o JL, ia ao cinema às segundas que era metade do preço para estudantes, ia ao cinema ao Fórum Picoas ver filmes antigos a metade do preço. Cinema de autor, com cópias muito gastas. Mas era barato. Ia à Cinemateca pelos mesmos motivos. E, claro, frequentava o Olimpo do Jazz (quando ainda não era moda) na Praça da Alegria – o Hot Clube, nos dias em que não se pagava entrada. É engraçado, porque o António apareceu com essa conversa. Que tb lá ia, aos mesmos dias. Mas esse é profissional. Só lhe falta ainda é muita estrada para andar que lhe permita contabilizar as mesmas entradas que eu.

Ia a museus, por exemplo ao de arte antiga na Rua das Janelas Verdes, ao museu da Marinha, andava pelos bairros típicos de Lisboa. Fazia Kms a pé. Ia a igrejas antigas. Ao museu da Gulbenkian. Fui poucas vezes (umas 10) ao teatro da Cornucópia, por exemplo, porque era caro. Nunca assisti a uma Ópera, porque era caríssimo, para além da indumentária necessárias para frequentar esses eventos. Ao Ballet fui ver a Companhia Nacional de Bailado e, quando ainda existia, a Escola de Dança Moderna da Gulbenkian.

Perdia-me no horizonte do Tejo num sexto andar de um prédio da minha escola, que tinha uma varanda pequenina e espetacular sobre o rio. Era no bar dos professores. Era capaz de lá estar horas. Bebia um café, fumava uns cigarros e ficava em silêncio a olhar para o rio. 

No fim, paguei todos estes disparates com diversas faturas altíssimas com um IVA de alguns 60%.

Fiz num ano 2 cadeiras do 1º ano, uma do segundo, 2 do terceiro, duas do quarto e o quinto ano todo. Ou seja, passei a viver na faculdade. Entrava às 8.00 e saía pelas 23.00 Almoçava e jantava na cantina. E, … fiz tudo. E com notas boas.

Não há dúvida que o facto de o meu pai poder saber que eu tinha perdido tanto tempo sem fazer nada de jeito, revestiu-me de uma força motivadora tão grande, que levei tudo à frente e, ainda entrei no mestrado.

Já estava casado com a Luizete. Ela a acabar filosofia na Universidade Católica com excelentes notas.

Por lá ficamos. Tínhamos tão pouco dinheiro que a única coisa que nos podíamos dar ao luxo nessa altura era, às sextas feiras, irmos jantar ao Mac (o primeiro do país e único em Lisboa nesse tempo) no Saldanha, depois íamos beber café ao Galeto, atravessávamos a avenida da República para ir ao cinema no Monumental. E, sentíamo-nos ricos!

Esse foi o único luxo a que nos podíamos permitir.

Bons tempos.

Ela estava a fazer o estágio e eu o mestrado.

Eu trabalhava com o Professor Armando de Castro. Muito feliz era eu nessa altura.

Até que … fiz uma entrevista para estágio com o senhor Henrique Neto e pouco tempo depois viemos viver para a Vieira.

Não acabei o mestrado. Até me estava a redimir. Com notas bastante altas e ficaria por lá para sempre. A Luizete terminou o seu estágio e podia concorrer a qualquer escola do país. Concorreu para Leiria e entrou. Já eu vinha com a promessa de 'criar o departamento de marketing de todo grupo Iberomoldes'. Respondendo apenas ao grande senhor dos moldes e quase futuro presidente da república portuguesa.

O resto é o resto.

Ficaram-me anos inesquecíveis na BIP, no GOL, no BCP, na Assembleia de Freguesia, na TUMG e no PS.

Quanto às promessas megalómanas do senhor Henrique Neto ficaram mesmo por isso. Assisti e vivenciei tantas e tantas cenas absolutamente grosseiras, malcriadas. Gritarias várias a roçar o histerismo. Nunca passará de um novo rico, despeitado e ressabiado.

Acreditei nele.

Quando olho para trás, apesar de ter sido suficientemente feliz desde que voltei para a Vieira, penso que nunca o deveria ter feito.

Talvez porque, nessa altura, em Lisboa, com tão pouco, ainda acreditava em tudo. E, sobretudo, em toda a gente.

Agora e aqui e passados trinta anos, só me restou acreditar em pouco ou quase mesmo em nada. E em muito pouca gente. 

E isto não é da idade. É mesmo da vida. Que nos obriga a fecharmo-nos dentro de nós mesmos e valorizar os nossos e pouco mais. A vida sempre foi assim afinal.

Se é triste?

Para mim é!

Por tudo isto, por vezes, tantas vezes, sinto que não sei como educar os meus filhos. Gostava que acreditassem sempre, no que sonham. Mas, infelizmente, não é assim.

A vida, ela própria, e algumas pessoas, encarregar-se-ão de lhes demonstrar que não. Não é assim.     


Cardeal Dom José Tolentino Mendonça.


 


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