Carta aberta aos nossos antepassados

 


por Júlio Gouveia

"Com todo o respeito que devo à vossa memória, Avô Joaquim, ao seu irmão Tio João Gouveia, e a todos os que se lhes juntaram, parceiros de ideários e cúmplices de tantas lutas, honradas pela dignidade e pelos valores e ética republicana, com vergonha própria e alheia, tenho que lhes pedir que nos desculpem.
Estamos habituados ao rumor que vem do mar, mais agora com a ausência dos pinheiros que a incúria e a incompetência deixaram queimar. Sabemos pelo clamor, quando está dócil e dado a contemplações amistosas, ou quando a sua fúria faz chegar o som do descontentamento bem longe, num troar ininterrupto. Assim tem sido a mudança do estado de alma da nossa gente, cada vez mais a verbalizar o que antes era mero pensamento.
Ao fim de 105 anos da vitória das vossas ideias, que culminaram com a saída da Vieira de Leiria do Concelho de Leiria e com a união aos Marinhenses na restauração do Concelho da Marinha Grande, que antes havia sido instaurado e depois anulado, sinto cada vez mais que estamos numa encruzilhada com diversos caminhos.
Pelos registos disponíveis sabemos como foi árdua a vossa luta, quer na restauração do Concelho, quer depois nos longos tempos em que representaram a Vieira na vereação, lutando pelo progresso da região e da nossa terra, agora sem obediência à hegemonia da Igreja Católica tradicional que continuava a grassar nas terras de Ulmar, e via nos Vieirenses como que um bando de hereges pouco recomendáveis, dadas as posições políticas que queriam fazer valer na vereação da Câmara de Leiria.
Mas vocês entenderam que na Marinha Grande, seria diferente, como foi.
Ainda assim, foram muitos os que na sociedade Leiriense não desistiram de lutar contra o obscurantismo das ideias, pelos direitos dum Estado Laico e Republicano, que só depois da Revolução de Abril conseguiram fazer vingar na plenitude.
Ao fim de muitos anos do vosso empenho na Vereação do Concelho, em tempos difíceis, e apesar das agruras do ganha-pão no dia-a-dia, da própria dificuldade de transporte, nunca deixaram a defesa dos interesses públicos até que o Estado Novo e a Ditadura trouxerem outros critérios para a escolha dos representantes.
Não sei, por tudo isso, queridos antepassados, se vos afronta que desde há uns tempos a maioria dos Vieirenses sonhem que é altura de dizer basta, e se for, não sei também se julgam que, não estamos a exercer com dignidade os direitos e deveres que Abril nos devolveu como vós estaríeis. Deveríamos ter sido muito mais activos na busca da nossa representatividade e mais claros na exigência de compromissos.
Não sei mesmo, se considerando todas as evoluções e a normalidade democrática que se vive em ambos os Concelhos, Vós mesmo, no nosso lugar, não estariam a renegociar o retorno.
Para onde caminhámos nos últimos tempos não nos trouxe felicidade. Estamos mal, à mercê da vontade dos eleitos que legal mas não legitimamente nos representam, e os efeitos dessa vontade de décadas, ou da sua falta, reflete-se no abandono da nossa terra, no passar ao largo das oportunidades, na falta de empenho em resolver os nossos problemas, que não são só nossos mas do Concelho, e na diferenciação cada vez maior a que se assiste no progresso da Praia do Concelho vizinho, aposta clara da Autarquia como se vê pelo forte investimento e pelo caminho percorrido para a projeção de uma e de outra.
Não temos, obviamente, dimensão para lutar pela independência e criação de Concelho autónomo, mas temos muito para acrescentar a quem quiser ser parceiro de verdade.
Mantendo o estado das coisas, nós que nos sentimos bem representados na nossa Junta de Freguesia, devemos no futuro elaborar uma espécie de caderno de encargos a incluir nos programas eleitorais dos partidos e movimentos, votando nas listas que se comprometam e tenham candidatos elegíveis que claramente nos representem. Será pedir muito?
Como declaração de interesse, afirmo às almas mais desconfiadas que nada nos move contra S. Pedro. É uma praia que a natureza e os homens tornaram lindíssima e que deve ser beneficiada com tudo o que a faça ainda melhor, a proteja e realce as suas qualidades, Se bem que os habitantes, talvez preferissem algumas limitações para preservar o seu sossego.
Queridos antepassados, considerando o amor que tiveram em vida, para além da nossa Terra, ao Teatro Amador, chegou a hora de Vos perguntar se, agora que estamos em paz e os ares são outros, será que na falta de entendimento, não é o tempo de encenarmos um Auto Bíblico sobre a Parábola do Filho Pródigo?
Incondicionalmente vosso,
Júlio Gouveia"

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