PCP
Na minha Casa viveram-se sempre alguns episódios, não direi
loucos, mas algo parecido com o inesperado e surpreendente.
Todo o pessoal que por cá passou, tirando talvez a minha avó
e a minha tia Julieta, traziam dentro de si mesmos uma dose de ‘loucura’ bem
acima da média. O que, muitas vezes significa uma enorme mais valia, caso o
portador da mesma a saiba aplicar com sabedoria e em benefício próprio.
Quando o meu pai terminou a instrução primária e como o meu
avô António não tinha posses para lhe proporcionar a continuação dos estudos,
pediu ao Professor Gilberto Correia Roseiro, para que o seu filho repetisse a
4ª classe, ficando assim com uma ‘bagagem intelectual’ bastante acima da média.
E, o meu pai lá foi repetir tudo o que tinha feito.
O meu avô deve ter achado que tinha tido uma ideia de génio,
tendo ficado mais tranquilo com as capacidades escolares do filho.
Tudo isto para dizer que o meu pai, tinha apenas a 4ª
classe. Sempre que disto faço menção, é com enorme orgulho no grau de instrução
que o meu pai teve durante toda a vida. Logo depois dos exames feitos, pela
segunda vez, começou a trabalhar, nas diversas actividades que o meu avô possuía.
Com dez anos.
Conto esta breve história familiar, porque, por vezes me
repugna à náusea a apresentação constante de certos curriculum tão pobres como
breves. Destaco, no entanto, que por comparação com o do meu pai, fazem dele
quase um analfabeto. Este tipo de pseudo humildade trás sempre consigo uma
frase do género, “comecei a tralhabar aos 14 ou aos 15” “Não possuo qualquer licenciatura,
tudo o que sei, aprendi na Universidade da Vida”.
Existem ainda outro tipo de gente, brutalmente complexada
por não possuir um título académico superior, e, com isso ofendem bastas vezes
aqueles que o têm.
Quando eu não tinha mais de 3 anos, o meu pai dizia-me
assim: “diz ‘abaixo o Marcelo Caetano’, ‘abaixo o Américo Tomás’”. Eu dizia
claro, mas a minha mãe, coitada, só lhe pedia: “não ensines essas coisas ao
menino”.
Sempre, desde que me conheço como gente, fui sempre uma boca
santa. Tinha enorme dificuldade em guardar para mim tudo o que ouvia em casa,
que, obviamente, tinha como indiscutível, irrebatível e absoluto.
Andava eu no infantário e dizia aos meus colegas que os
pretos é que tinham razão, o país era deles, etc.
A minha tia e o meu pai foram chamados à direcção para terem
conhecimento dessas minhas posturas totalmente desadequadas.
Penso que a mim não disseram rigorosamente nada.
Limitaram-se a comentar num almoço qualquer para grande aflição da minha mãe.
Até hoje penso que o meu pai e a minha tia se estavam a divertir com esse
episódio.
O meu pai munido da instrução primária com duas quartas
classes, quando era novo, tinha discos de 45 rotações russos, lia livros de
autores russos, era do partido comunista. E assim foi até 21 de Agosto de 1968,
tinha eu 3 meses, e a cidade de Praga foi invadida.
Desfiliou-se do PCP, continuou a respeitar todos os seus
ex-camaradas e seguiu outros caminhos, desde que dentro dos limites da
liberdade, da república, do antifascismo e da democracia.
Recordo todas estas pequenas histórias de família tão só e
apenas, porque as duas quartas classes do meu pai, a sua visão do mundo e da
vida bastaram-lhe para se separar de uma ideologia que para a maioria das
pessoas (intelectuais, catedráticos, poetas, actores, jornalistas, empresários
e músicos) tiveram de esperar até 1991, quando o muro de Berlim caiu
estrondosamente!
Anos mais tarde, Álvaro Cunhal, cujos livros guardo nas
minhas estantes e que pertenceram ao meu pai e à minha tia, escreveu um livro
com um curioso título: “O Partido com paredes de vidro”.
Já não eram comunistas, mas fizeram questão de o comprar,
ler e discutir. Nesta velha casa, o ideal comunista foi sempre respeitado.
Diria até, demasiado respeitado. A minha tia, sem qualquer religião ou crença,
bastas vezes dizia que o único comunista da História teria sido Jesus Cristo.
Como vêm, nesta minha casa, nunca existiram ódios, complexos ou cobardias de
vária ordem.
Foi aqui que nasci, que cresci e me fiz homem. Tenho uma
relação de amor profundo pela minha casa, talvez por isso, fiz questão de que todos
os meus filhos, a primeira porta que cruzassem fosse mesmo a do nº 22 da Praça
da República. Sempre adorei simbolismos, rituais, hábitos antigos e cheios de
significado.
Mas dizia eu, um dia o Dr. Cunhal escreve um livro cujo
primeiro objectivo foi mesmo provar que o partido comunista era um partido
democrático, aberto, tolerante e livre.
Todos aqueles que abandonaram o PC passaram a ser
considerados ‘traidores’. Com o meu pai nada disso se passou. Houve até um dia
que em conversa com os saudosos Manel do Cais e o Zé Moleiro, dois comunistas
icónicos da minha terra, me disseram, comovidos, mas absolutamente convictos: “O
teu pai é um grande democrata. Arriscou muito. Orgulha-te dele rapaz. E, por
seres um puto porreiro e filho de quem és vem provar a minha água pé com uns
torresmos. Olha que eu não faço isto a toda a gente rapaz.”
Nunca me esqueci destes dois comunistas vieirenses, como
nunca me esqueci daquela água pé e dos torresmos. O meu pai ainda era vivo
nessa altura. Quando cheguei a casa dei-lhe um beijo na testa e só lhe disse
tenho muito orgulho em ser teu filho. Ficas a saber!”. O meu pai não percebeu
nada do que se estava a passar e deve ter levado para mais uma loucura da minha
parte. E, como sempre, nem a boca abriu.
Agora, olhando para trás, tenho a certeza de que nunca lhe
contei esta história. Senti-me inibido talvez. Para mim este tipo de coisas
eram de uma intimidade absoluta. Não a soube partilhar.
O meu pai esteve para ser preso. Foi o guarda portão da
fábrica que tinha ouvido uma conversa e veio prevenir o meu pai. Quando o genro
do senhor Albano Feteira entrou no seu café, perguntou: “então Armando estás
bom?” Eram familiares e muito Amigos. O meu pai disse ao primo, “olhe, não
estou assim tão bem, porque soube que hoje me calha a mim. Vou ser preso pela
pide daqui a umas horas”.
O Dr. Franklim ficou, ao que dizem, lívido e saiu
apressadamente. Questionou o sogro acerca dessa intenção e a operação foi cancelada.
E o guarda portão despedido.
O que fizeram os comunistas da Vieira, perguntarão vocês?
Quotizaram-se para que o empregado despedido usufruísse do mesmo salário que
auferia na empresa. Até que conseguisse outro trabalho.
Nenhum comunista da Vieira e eram e ainda são muitos, se
sentiram traídos pelo Armando Teodósio, quando deixou de ser militante.
A traição é uma palavra forte. Normalmente usada pelos
fracos. Pelos que já traíram, pelos que estão plenos de telhados de vidro e
rabos de palha e são incapazes de ver para além dos seus próprios umbigos.
Quando uma pessoa sai do PS, entra noutro partido ou grupo
de cidadãos é o quê? E quando a mesma pessoa sai do grupo de cidadãos e reentra
no PS, é o quê? Quando uma pessoa define como annus horribilis muitos anos de
gestão PS é o quê (já depois de se ter tornado novamente Socialista)?
Quando, depois de tudo isto escrevem loas no jornal do
Concelho aos últimos quatro anos é o quê?
Pois é. Escusamos de ir ao Império Romano procurar
historietas acerca de traidores e traição, quando os temos aqui bem perto.
Nesta matéria, que fique claro, alguns militantes do Partido Socialista não traíram ninguém. O que
está a acontecer é que, infelizmente, mudaram, radicalmente, as ‘circunstâncias’.
E, já agora, … o maior cego é aquele que não quer ver!
Para bom entendedor…
Comentários
Enviar um comentário